08/04/2021 – 19:07
• Atualizado em 08/04/2021 – 20:50
Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Luciano Góes defendeu a exclusão da injúria racial do Código Penal, para que as condutas sejam julgadas como crime de racismo
Magistrados e especialistas sugeriram nesta quinta-feira (8) mudanças na legislação de direito penal para tornar mais eficaz o combate às diversas formas de racismo que persistem no Brasil. O assunto foi discutido na 13ª reunião da comissão de juristas formada pela Câmara dos Deputados para propor leis de combate ao racismo.
O desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) Lidivaldo Britto chamou a atenção para as brechas na legislação que possibilitam a impunidade, como o fato de a injúria racial não ser equiparada ao crime de racismo. Esse entendimento está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), e Brito acredita que a decisão será a de equiparar os dois crimes.
A principal reclamação do magistrado, no entanto, é o fato de muitas penas mínimas previstas para os crimes raciais serem de apenas um ano de detenção, o que, pela legislação atual, permite que os casos sequer sejam julgados.
Lidivaldo Britto sugeriu um aumento da pena mínima para dois anos, como foi feito recentemente na lei de proteção aos animais, que também gerava altas taxas de impunidade. “Não é possível que maus-tratos a um animal, com todo o cuidado que nós devemos ter aos animais, tenha pena mínima maior do que a de um delito de discriminação racial. Isso é inconcebível”, afirmou. “Eu não sou punitivista, mas entendo que, no mínimo, o autor de um crime de discriminação racial tem que responder a um processo.”
Já o advogado, escritor e professor de Direito Penal Luciano Góes foi mais contundente na sua crítica e defendeu a exclusão da injúria racial do Código Penal, para que as condutas sejam julgadas como crime de racismo.
“A inclusão da injúria racial, das ofensas raciais e dos xingamentos racistas no Código Penal foi, ao meu ver, uma manobra da branquitude, exatamente para tirar a responsabilização, a etiqueta racista. A condenação que, por ventura, muito dificilmente haja, vai ser uma condenação por injúria, e não por racismo. Pautar o racismo, explicitar o racista, sempre é algo pedagógico para nós, na luta antirracista”, afirmou Luciano Góes.
Encarceramento
Outro tema questionado durante a reunião foi o hiperencarceramento da população negra, que responde a mais de 2/3 do sistema penitenciário. Para o juiz de Execuções Penais do Amazonas Luiz Carlos Valois, essa proporção elevada é um exemplo claro de racismo estrutural, que tem nas polícias seu mecanismo principal.
Nesse contexto, Luiz Carlos Valois citou a dificuldade de defesa em processos por tráfico de drogas. “Enquanto tivermos jurisprudências autorizando que um juiz condene uma pessoa com a palavra exclusivamente policial, aquela pessoa não tem defesa”, afirmou. “Da mesma forma que ela diz ‘como eu vou conseguir testemunha contra traficante?’, a pessoa também não vai conseguir testemunha contra o policial. E essa pessoa não vai ter defesa. Nós temos um processo de difícil defesa, onde quem escolhe quem é traficante ou quem é usuário na rua é o PM.”
A principal justificativa para o encarceramento de negros em massa é a guerra às drogas, ressaltou o doutor em Direito Penal e professor da Universidade de São Paulo (USP) Maurício Dieter, que classificou esse enfrentamento como inútil.
Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Maurício Dieter sugeriu mudanças na legislação, como a proibição de júri formado por brancos para julgar negros
“No Brasil contemporâneo, a definição de um ser humano como traficante autoriza sua morte, tortura, desaparecimento e prisão, sem que justificativas mais elaboradas sejam necessárias, e com a costumeira leniência do Ministério Público e do Judiciário”, disse Maurício Dieter.
O professor da USP apresentou, junto com pesquisadores que orienta, uma série de propostas para alterações pontuais na legislação. Para ele, no entanto, o ideal seria acabar com a guerra às drogas.
Entre as medidas sugeridas estão:
- a inclusão da vulnerabilidade entre os critérios para redução ou exclusão da punição;
- proibição de júri formado por brancos para julgar negros;
- câmeras individuais para todos os policiais que fazem abordagens, como já determinado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ);
- delimitação do conceito de comportamento suspeito;
- fim dos mandados genéricos de busca e apreensão em comunidades;
- ouvidorias com participação dos grupos que são vítimas de abusos policiais.
A desigualdade nas oportunidades e na repartição do orçamento público também foi citada por vários debatedores. Eles ressaltaram que, apesar das cotas para negros serem um avanço, na ocupação das funções de chefia e confiança prevalece uma maioria branca, oriunda das elites.
A advogada e ativista Luciana Zaffalon, da Plataforma Justa, deu o exemplo de que, no mesmo período em que o sistema prisional de São Paulo perdeu R$ 35 milhões no orçamento para saúde e higiene prisional, os gastos do Tribunal de Justiça e do Ministério Público do estado subiram mais de R$ 780 milhões. Ela lamentou ainda que apenas um valor insignificante seja empregado em política de auxílio a ex-presos.
Luciana Zaffalon afirmou que hoje, no estado de São Paulo, para cada R$ 442 gastos com a manutenção do sistema prisional, apenas R$ 1 é investido em política de atenção aos egressos. “Ou seja, há investimento enorme na porta de entrada do sistema prisional, e quase nada na porta de saída. É absolutamente urgente que se inverta esse funil de investimento, garantindo um mínimo de possibilidade de recolocação e acesso a direitos, como documentos, para quem deixa o sistema prisional”, defendeu a ativista.
Grupo de juristas
A comissão da Câmara dos Deputados que promoveu o debate é formada por 20 juristas, todos negros, e tem até meados de abril como prazo inicial para concluir seus trabalhos e apresentar sugestões de alteração na legislação.
Reportagem – Lincoln Macário
Edição – Pierre Triboli