DANIEL MONTEIRO
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A proibição da participação de crianças e adolescentes em bailes funk na capital paulista, proposta no PL (Projeto de Lei) 502/2017, de autoria do vereador Ricardo Teixeira (DEM), foi tema de Audiência Pública virtual da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara Municipal de São Paulo realizada na tarde desta quinta-feira (3/6). O debate atende requerimento de autoria da vereadora Elaine do Quilombo Periférico (PSOL), que presidiu os trabalhos.
Segundo o texto do projeto, o descumprimento da proibição acarretará multa de até R$ 10 mil “por hora de indevida exposição da criança ou adolescente ao ambiente impróprio”, salvo casos em que haja autorização judicial para sua presença no local.
Na justificativa, o autor argumenta que os bailes funk tornaram-se atrativos para crianças e adolescentes, porém podem ser locais inadequados para elas. Dessa forma, a proposta visa garantir a plena execução do disposto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal 8.069/90), assegurando que essa faixa etária “não seja exposta a ambientes inapropriados ao seu desenvolvimento”.
Manifestações populares
Primeira participante da audiência, a diretora da Frente Nacional de Mulheres no Funk, Renata Prado, defendeu a cultura do funk no país e rebateu os argumentos apresentados na justificativa do PL. “Esse projeto de lei faz parte de um processo de negar os direitos dos jovens de acessar a cidade”, disse. “O baile tem uma cultura, tem música, tem dança, tem jovens que têm consciência do seu acesso às políticas públicas, que têm consciência do seu direito de ocupar a cidade, tanto nas regiões centrais como nas periferias”, comentou.
“Se a gente não olhar o funk como política pública e como garantia de direitos, vai acontecer o que sempre aconteceu: a violência policial. Porque a única representação do Estado que o funk tem é a polícia. E o que nós queremos é que não aconteça novamente o que aconteceu no dia 2 de dezembro de 2019, no Baile da 17, onde ocorreu o massacre dos nove jovens de Paraisópolis, que a gente não pode esquecer”, ressaltou Renata.
Na sequência, Cida Mineiro, representante do CRESS-SP (Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo), fez diversas críticas ao projeto. “Ele representa um retrocesso aos direitos das nossas crianças e adolescentes, porque ele impõe às mesmas um toque de recolher que já acontece nas regiões periféricas da nossa cidade e agora estão querendo legalizar esta situação”, afirmou.
“Nós, do CRESS São Paulo, entendemos que os direitos das nossas crianças e adolescentes atualmente se realizam de modo distinto a depender da condição econômica de cada sujeito. Há uma escancarada e vergonhosa distinção entre aqueles e aquelas que são filhos e filhas das elites e os/as que são filhos e filhas dos trabalhadores e das trabalhadoras, assim como entre aquelas e aqueles que são brancos e brancas e aqueles e aquelas que são pretos e pretas e indígenas. Esse PL acirra a criminalização contra filhos e filhas da classe trabalhadora”, pontuou Cida.
Para Renato Almeida, da Ação Educativa, não há justificativa para o projeto. “Já existem uma série de leis, no município e no país, que já protegem e não permitem o acesso de crianças e adolescentes em determinadas instalações. Então, não haveria a necessidade desse projeto nesse aspecto. Mas, quando a gente lê a justificativa do projeto, fica muito evidente o caráter bastante preconceituoso que o PL tem. E, inclusive, como uma tentativa de criminalizar o funk, tal e qual uma série de outras ações já aconteceram na cidade de São Paulo”, pontuou.
Contrário ao PL, Bruno Ramos, da Liga do Funk, também criticou a proposta. “É muito importante a gente lembrar que as periferias vivem um estado de exceção permanente: é a tortura, é a execução e, depois, uma segunda morte, que é a condenação pelos meios de comunicação”, alertou. “Esses tipos de abusos por parte do Estado já vem acontecendo há muito tempo, tanto pela grande mídia, quanto pelos políticos. E eu considero que essa ação, proposta pelo senhor Ricardo Teixeira, é uma questão de miopia política e miopia cultural, porque quando se tenta responsabilizar o movimento funk pelo que acontece nas pontas, é porque não entende de fato”, opinou.
Em sua fala, Marco Antonio da Silva Souza, coordenador do projeto Meninos e Meninas de Rua, lembrou o histórico de ações repressivas à cultura negra e periférica e fez um paralelo ao que propõe o PL. “Isso, para nós, não nos estranha, um projeto dessa natureza”, disse. “Isso já aconteceu com a capoeira, porque nós já fomos e ainda somos enquadrados na Lei da Vadiagem. Porque quem pegou os Black Power, nossa época dos bailes black, aquelas preta e vermelha [viaturas policiais] sempre enquadrando a gente simplesmente por sermos pretos e estarmos nos nossos espaços. Como isso aconteceu com o hip-hop, como houve a associação do hip-hop com o crime, dizendo que era um bando de bandidos e fazendo apologia ao crime. Como isso vem acontecendo e aconteceu com o samba”, lembrou.
Outra a se manifestar contrária à proposta foi Alessandra Silva, do Conselho Tutelar do Lageado. “Estamos aqui para registrar nosso repúdio a um Projeto de Lei que criminaliza manifestações populares”, afirmou. “Essa perseguição já aconteceu mais acirrada com o hip-hop e com o samba, que são todas manifestações populares do povo negro. E a gente entende que essa política que está sendo feita não é voltada para as comunidades”, destacou.
Representante da Uneafro Brasil, Jéssica Ferreira também fez diversas críticas ao PL. “A possível aprovação dessa lei é mais um mecanismo político que criminaliza a cultura funk, a periferia, a pobreza e que reafirma o estereótipo de que o lazer nesses territórios estão associados ao tráfico de drogas, ao uso de álcool e à sexualização de crianças e adolescentes, validando também ações violentas da polícia de São Paulo nos bailes da favela”, ressaltou.
Participante da audiência, Jorge Artur Canfield Floriani, do Fórum Estadual dos Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes, citou a utilização do ECA para fins que não atendam aos direitos de crianças e adolescentes. “Nós vemos, nessa escalada de autoritarismo, o Estatuto da Criança e do Adolescente ser lido numa chave heurística, numa interpretação absolutamente ligada ao Código de Menores de 1979. Então, a gente está vendo o ECA, que é fundamental no melhor interesse das crianças e dos adolescentes, ser utilizado com objetivos autoritários, com objetivos que mascaram a realidade brasileira”, apontou.
Representante do Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) Sapopemba, Sidnei Ferreira da Silva também se manifestou contrário ao PL. “Nós lamentamos a elaboração desse tipo de projeto, que ainda busca fundamentação no ECA. Essas interpretações equivocadas acabam sendo um grande problema para as regiões periféricas”, criticou.
Cátia Dias, da Associação Rolê na Quebrada, elogiou o debate e as colocações dos participantes, mas fez ressalvas quanto à falta de participação dos jovens diretamente ligados ao funk na discussão. “As pessoas do funk, as quebradas, têm que ser ouvidas”, reforçou. “Nós precisamos ouvir essa juventude. Vamos colocar eles como participantes desse projeto”, sugeriu.
O procurador de Justiça Cível do Ministério Público de São Paulo, Eduardo Dias de Souza Ferreira, ex-promotor de Justiça da Infância e Juventude da capital, apresentou um histórico e analisou as ações propostas pelo Poder Público para incentivar e organizar as atividades culturais na periferia, tanto as planejadas (como shows e eventos), quanto as espontâneas (como os chamados pancadões).
Ele também comentou o conteúdo do projeto e sugeriu formas de agir em relação aos bailes funk. “O que vai dar [uma solução para o problema] é investimento pesado em áreas de lazer, em áreas próprias para esses eventos, em áreas próprias para os encontros e, de vez em quando, ‘organizar a bagunça’ e dizer ‘olha, não dá para ter final de semana, no mesmo ou no mesmo quarteirão’. Mas dá para fazer um rodízio, dá para todo mundo saber onde vai ter e dá para o pessoal se organizar”, afirmou.
Participação dos vereadores
Participante da audiência, o vereador Jair Tatto (PT) endossou as manifestações dos participantes do debate. “Hoje, eles tentam barrar o baile funk. Amanhã, eles vão tentar barrar o rap. No outro dia, eles vão tentar barrar o samba. Tudo na justificativa de que as pessoas que lá frequentam não são saudáveis aos órgãos públicos”, criticou.
Para o vereador Dr. Sidney Cruz (SOLIDARIEDADE), o foco das iniciativas nas periferias deveria estar na promoção de políticas públicas propositivas, e não proibitivas. “Quem é da periferia sabe que o que falta são oportunidades, opções e atividades culturais. Todas as falas aqui têm muita pertinência, muito conhecimento de causa. E é lamentável que nós não estejamos discutindo políticas públicas ofertivas para nossa população periférica”.
Já o vereador Eduardo Suplicy (PT) elogiou a audiência e destacou a necessidade de o conteúdo do debate ser enviado ao autor do projeto. “Será muito importante que possam as notas taquigráficas de todos os depoimentos aqui colocados serem enviados ao vereador Ricardo Teixeira”, afirmou.
Também participaram os vereadores Delegado Palumbo (MDB), Fernando Holiday (NOVO), Juliana Cardoso (PT) e Luana Alves (PSOL). A íntegra da Audiência Pública desta quinta-feira está disponível neste link.