É na sala de aula que pessoas em situação de rua estão tendo a chance de sonhar, acordadas, com o resgate da dignidade perdida. Um grupo formado por 13 delas está recebendo ajuda do Governo do Estado, em parceria com a Comunidade Nova Aliança. Por meio do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam), viraram alunos do curso “Confeitaria de doces e salgados”.
Desde o dia 20 de maio, os futuros confeiteiros chegam cedo à sede da comunidade, localizada no Centro de Manaus. Passam pela higienização, vestem uma camisa branca e sentam-se para receber os ensinamentos numa aula que vai das 8h ao meio-dia, de segunda a sexta-feira.
Emerson Valente de Souza, de 40 anos, é um dos alunos. Ele está animado e faz planos de vender salgados. Seu maior desejo é voltar a ter renda. Afirma já ter trabalhado descarregando caminhão e também como bombeiro hidráulico, até sofrer um acidente. “Faz seis anos que fiquei deficiente do braço esquerdo, e agora pretendo trabalhar cozinhando. Quero ajudar a minha família”, diz.
Souza se afastou da mãe e dos irmãos quando tinha 16 anos. Durante 20 anos viveu pelo Centro de Manaus. Há cinco anos ganhou um teto no bairro João Paulo, quando foi “resgatado” pela atual esposa. “Deus mandou ela para mim”, agradece ele, que se intitula um ex-morador em situação de rua tentando resgatar os laços com mãe e irmãos. “Não vou negar que sofri recaídas nesse período e voltei a viver ao relento. É uma luta constante”, admite.
A luta para sair das ruas e se manter longe da tentação do álcool e de outras drogas também é enfrentada por Edcarlos Alves do Nascimento, 35, outro aluno do curso de confeitaria na Comunidade Nova Aliança. Sua história não é diferente da vivida pela maioria de seus colegas: abandonado pela mãe aos 10 anos de idade, ele cometeu pequenos delitos, chegando a levar tiros e ser preso por duas vezes.
“Nem acredito que tenho conseguido me concentrar nas aulas. Estou sóbrio! Quero muito aprender a cozinhar e ter mais opção para poder ganhar dinheiro”, conta, destacando que nunca estudou. Mas seu esforço fez com que aprendesse a cortar cabelo e a fazer maquiagem. “Todo sábado realizo trabalho voluntário em um espaço católico no Vieiralves. Fico lá cortando cabelos das 7h às 10h.”
Pratos vendáveis – O professor José Sócrates Olavo de Souza, 60, instrutor do Cetam, fica à espera do grupo de moradores de rua desde as 7h. Prepara as aulas, sempre focado na escolha dos pratos que terão fácil vendagem, buscando inseri-los na economia de subsistência, de emprego e renda. Na lista de quitutes estão salgados como coxinha e empadão de frango, além de doces variados.
“Também estou ensinando técnicas de trabalho à turma, noções de cidadania, disciplina, tratamento interpessoal, cumprimento de horários e a aceitação”, explica Sócrates, um baiano que reside em Manaus há apenas três meses e que já abraçou a causa. “Nesse pouco tempo observei neles uma mudança de comportamento para melhor. Estão comprometidos a aprender e a deixar, de fato, as ruas, sendo protagonistas de sua própria cidadania”.
De acordo com a professora Rogéria Mesquita, coordenadora do projeto Cetam/Terceiro Setor, essa parceria com a Comunidade Nova Aliança é uma iniciativa positiva para proporcionar qualificação profissional às pessoas em situação de risco social e possibilitar a inserção ao mercado de trabalho.
BOX 1: Trabalho completa 24 anos
O trabalho da Comunidade Nova Aliança começou em Manaus há 24 anos, a partir da iniciativa do fundador Atevaldo Menezes, 56. Tell, como é mais conhecido, explica que busca viver as obras de misericórdia em favor das pessoas em situação de rua.
Segundo ele, as ações iniciais da comunidade concentravam-se na doação do “sopão da caridade” em pontos estratégicos da cidade. Mas, há 19 anos, desde que a Arquidiocese de Manaus cedeu o prédio de três andares na rua Visconde de Mauá, ele e amigos voluntários passaram a oferecer serviços diversos às pessoas em situação de rua.
De acordo com Tell, a iniciativa sempre teve por objetivo o resgate da cidadania, inserindo-os novamente à sociedade, reconstruindo e fortalecendo os vínculos com as famílias. “É uma satisfação enorme ver que seres humanos, até então desacreditados, estão conseguindo recuperar sua dignidade aos poucos”, diz.
BOX 2: Comunidade tem mais de 500 cadastrados
Atualmente, mais de 500 pessoas em risco social estão cadastradas junto à Comunidade Nova Aliança. Dessas, uma média de 150 frequenta diariamente o local, que vive de doações e parcerias.
Aqueles que chegam pela primeira vez passam pela escuta qualificada e orientações, seguidas do cadastro. O passo seguinte, conforme a assistente social Francilene Carneiro, 45, coordenadora do projeto social, é ver a necessidade de cada um e acionar a rede articulada. Segundo ela, os serviços são tipificados pela assistência social, fazendo parceria com outras políticas públicas como o Sistema Único de Saúde (SUS), previdência social, habitação, cursos profissionalizantes, entre outros.
A instituição também trabalha em parceria com outros órgãos por meio de ações sociais, “Conseguimos tirar documentos e fazer atendimento médico, odontológico e psicológico. É um trabalho de formiguinha. Ano passado, 14 deixaram as ruas. Este ano, somamos mais seis a essa lista”, relata Francilene, frisando que na casa trabalham 19 pessoas, sendo 12 voluntárias e sete remuneradas. “A equipe é composta de assistentes sociais, psicóloga, assistente administrativo, cozinheira e serviços gerais”.
Dentre as ações que ajudam a levar ao resgate da cidadania estão as palestras motivacionais, jogos lúdicos, oficinas de empoderamento, dia de vivência e cinema reflexivo. Elas acontecem às terças e sextas-feiras e contam com a presença de 60 a 80 pessoas.
“Filmes como ‘O Rei Leão’, por exemplo, ajudam a trabalhar o perdão nas pessoas que estão em situação de rua. Eles precisam se perdoar para poderem perdoar a família”, conta a assistente social, explicando que após cada exibição é feita uma roda de conversa, onde os espectadores dizem o que captaram do filme.
Na Comunidade Nova Aliança também é servido almoço para uma média de 120 pessoas, sempre às quartas e quintas-feiras. Na sexta é oferecido o café da manhã. O local conta, ainda, com o serviço de guarda-pertences para aqueles que não têm onde deixar o pouco que possuem.