A história da construção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não está gravada apenas no concreto sólido desenhado por Oscar Niemeyer, nos vitrais de Marianne Peretti que deram a Brasília um novo cartão-postal, mas também na evolução dinâmica da jurisprudência, na definição de algumas das teses jurídicas mais importantes para a sociedade brasileira. E aqui, entre paredes e processos, entre o tribunal de concreto e a corte de precedentes, passaram e ficaram as pessoas, a face humana que transformou uma instância superior no Tribunal da Cidadania.
Entre tantas personalidades, duas delas estavam em momentos bem distintos em outubro de 1988, quando a recém-promulgada Constituição Federal incluiu o STJ entre os órgãos do reestruturado Poder Judiciário brasileiro: enquanto o então presidente do Tribunal Federal de Recursos (TFR), Evandro Gueiros Leite, recebia da Assembleia Nacional Constituinte a missão de coordenar a estruturação da Justiça Federal e instalar o STJ, o atual presidente, ministro João Otávio de Noronha, observava como advogado os primeiros passos da nova corte, sem saber que, anos depois, viria a se tornar o seu 18º dirigente.
Nos primeiros dias, Gueiros Leite, relator do recurso especial número 1; nos atuais, João Otávio de Noronha, relator do recurso especial de número 1 milhão. Na véspera do aniversário de três décadas da Constituição, a ser comemorado nesta sexta-feira (5), o primeiro e o atual presidente do STJ dividem visões sobre a história, a evolução e o futuro do tribunal, que chegará aos 30 anos de instalação em 7 de abril de 2019.
Do barro ao concreto
Do topo de seus 97 anos, o ministro Gueiros Leite guarda na irretocável memória a recordação de que, como primeiro presidente do STJ, o desafio central consistiu em transformar um abstrato comando constitucional em uma estrutura judicial em pleno funcionamento. Segundo ele, o pedido de instalação célere dos cinco Tribunais Regionais Federais e do STJ veio do próprio presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães.
Ministro Evandro Gueiros Leite: o desafio dos primeiros anos
“Em seis meses, precisei extinguir o TFR e criar o STJ. Na verdade, doutor Ulysses, na nova Constituição, nos deu esse limite de seis meses. Eu cumpri, sem dinheiro, porque não houve dotação”, relembra Gueiros Leite.
Inicialmente, o STJ funcionou no antigo prédio do Tribunal Federal de Recursos, e o ministro conta que os primeiros esforços foram no sentido de encontrar uma solução para implantar a futura sede do novo tribunal. Ao mesmo tempo, como presidente do Conselho da Justiça Federal (CJF), precisava resolver problema semelhante para os cinco Tribunais Regionais Federais, criados na nova Constituição para substituir o TFR como cortes de segunda instância da Justiça Federal.
No caso das cinco unidades federativas escolhidas para sediar os TRFs – Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco –, o foco foi a obtenção de concessões de uso, pelos governos locais e pelo governo federal, de prédios públicos sem utilização; no caso do STJ, a solução veio em abril de 1989, quando o governo do Distrito Federal destinou a área em Brasília onde seria construído o prédio do tribunal.
“Mas um tribunal não se faz com um só ministro. Depois vieram Washington Bolívar de Brito, Willian Patterson, que terminaram o novo prédio do STJ, com o projeto do Oscar Niemeyer. E aquele colosso é uma universidade”, descreve Gueiros Leite. A nova sede do STJ ficaria pronta em 22 de junho de 1995.
Do REsp 1 ao 1 milhão
“Quem quiser ler a história do STJ não consulte a mim, mas à primeira edição da Revista do Superior Tribunal de Justiça”, diz o ministro Gueiros Leite empunhando uma versão original do primeiro compêndio de normas e da legislação aplicável ao STJ, publicado em setembro de 1989. Também há desse periódico relevantes registros históricos, como a ata de instalação do STJ, ocorrida em sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 7 de abril de 1989.
Na ocasião, o então presidente da Suprema Corte, ministro José Néri da Silveira, destacava que “tal como sucedera com o Tribunal Federal de Recursos, em 1946, o Superior Tribunal de Justiça recolhe em sua competência parcela significativa da que se reservava, em regime anterior, ao Supremo Tribunal Federal”.
Com a divisão de competências entre o STF e o STJ, também os recursos excepcionais foram repartidos entre as duas cortes, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça, responsável pela última palavra em matérias infraconstitucionais não especializadas, a análise de uma nova classe processual: o recurso especial. O primeiro REsp, autuado pelo STJ em 22 de maio de 1989, foi relatado pelo ministro Gueiros Leite e discutia questões de direito empresarial.
“Imaginou-se que uma parte considerável dos processos submetidos ao Tribunal Federal de Recursos ficaria a cargo dos Tribunais Regionais Federais, cabendo ao STJ o julgamento apenas dos casos relacionados à infringência das leis federais. Os tribunais ‘limpariam’ e mandariam para o STJ, mas só matéria jurídica, não matéria de fato”, lembra o relator do primeiro REsp.
Todavia, a expectativa de que o sistema de admissão de recursos especiais (tanto nos TRFs quanto nos Tribunais de Justiça) tornasse a filtragem “um buraco de agulha”, nas palavras de Gueiros Leite, foi superada por um quadro de admissão crescente de recursos que, em um intervalo que ainda não chega a três décadas, ultrapassou a marca de 1,7 milhão de feitos processados até 2018.
Relator do processo que fez o STJ atingir a marca de 1 milhão de recursos especiais autuados, em 2007, o ministro João Otávio de Noronha credita à elevação da litigiosidade na sociedade brasileira uma parte da explicação para o crescimento exponencial do acervo processual da corte.
Ministro João Otávio de Noronha: preparando o STJ para o futuro
Segundo o atual presidente, além dos tradicionais conflitos na área econômica – como as ações contra empresas de telefonia e bancos, por exemplo –, a introdução da legislação pós-Constituição elevou as demandas submetidas ao STJ, exigindo que o tribunal interpretasse, “pela primeira vez, e por último”, uma série de inovações legislativas.
“Multiplicaram-se os instrumentos legais de proteção à cidadania. Isso fez com que as reivindicações do jurisdicionado aumentassem. E, como essas exigências não foram prontamente atendidas por quem deveria atendê-las, as questões acabaram judicializadas e desafiaram o STJ a pronunciar o seu posicionamento em milhares e milhares de processos”, avalia Noronha.
Para devolver o STJ ao papel central de tribunal uniformizador da legislação infraconstitucional, o ministro João Otávio de Noronha considera que as soluções, pouco a pouco, estão sendo introduzidas no sistema jurídico-processual. Os recursos repetitivos, ferramenta de julgamento de casos múltiplos fortalecida pelo novo Código de Processo Civil, são para o ministro uma maneira de conter os processos em primeira e segunda instâncias para que, após fixada a tese, seja aplicada uma “orientação de comportamento da sociedade”, reduzindo custos e tempo na tramitação processual e fazendo valer o sistema de precedentes no Judiciário brasileiro.
“Os recursos repetitivos representaram um avanço, mas nós precisamos evoluir ainda mais: um tribunal superior não tem o papel de rejulgar as causas dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais. O tribunal superior tem a atribuição de assegurar a inteireza dos direitos federais infraconstitucionais e dissipar as divergências jurisprudenciais. Ora, na medida em que se julgaram dez, 12 causas, fixou-se a jurisprudência, traçou-se a orientação comportamental da sociedade brasileira, não cabe mais chegar à corte a análise dessas matérias”, diz o ministro.
Da arbitragem ao meio ambiente
Apesar do colossal número de processos analisados ao longo de quase 30 anos, o Superior Tribunal de Justiça tem concentrado esforços para, como define João Otávio de Noronha, julgar causas que transcendam o mero interesse das partes em litígio para repercutir, de forma ampla, em campos como o econômico e o social.
Esse objetivo, definido em sua missão constitucional, nasceu com o STJ. E, logo após ter sido instalado, o tribunal não demorou a encabeçar discussões que passaram a influenciar amplamente a sociedade brasileira: por meio do REsp 616, relatado pelo ministro Gueiros Leite em 1990, a Terceira Turma reconheceu a possibilidade de instalação de um juízo arbitral no Brasil, ainda que sem a manifestação do STF.
O avanço jurisprudencial, explica Gueiros Leite, ocorreu mesmo antes da introdução da Lei de Arbitragem, promulgada apenas em 1996, e retirou do STF a necessidade de análise de alguns dos temas relativos à arbitragem.
“Assim, o STJ, por uma de suas turmas, introduziu no Brasil o arbitramento internacional. Nós liberamos o Supremo da obrigação de homologação. Isso teve uma enorme repercussão, porque o Brasil era uma ilhota em matéria de arbitramento, e entrou no arbitramento por meio de uma decisão judicial”, relata o ministro.
Desde então, o papel vanguardista do STJ tem sido reafirmado em sucessivas ocasiões, como no reconhecimento do direito ao casamento civil em relacionamentos homoafetivos, na garantia da prevalência da paternidade socioafetiva e na criação de um sistema jurisprudencial de proteção aos consumidores.
Segundo o ministro Noronha, o tribunal também tem atuação histórica em questões relativas ao meio ambiente. “Quem traçou um novo perfil das normas de direito ambiental no Brasil foi a jurisprudência do STJ”, resume o presidente.
Um dos julgamentos que representam a intersecção entre meio ambiente e o interesse público ocorreu em 2006, quando a Segunda Turma analisou pedido de reparação de danos ambientais pela construção de loteamento irregular na região da Represa Billings, em São Paulo. Sob a relatoria do ministro Noronha, o colegiado determinou a retirada de cerca de 30 mil pessoas das áreas de nascentes que abasteciam grande parte da capital paulista.
Além de levar em consideração a destruição ambiental verificada na região do reservatório, inclusive com prejuízos à Mata Atlântica, a turma concluiu que seria impossível, nesse caso, a conciliação entre o interesse público e o particular, o que resultou na prevalência do primeiro sobre o segundo.
“Era preciso garantir o direito de 20 milhões de moradores da Grande São Paulo, fazendo com que aquelas 30 mil pessoas que estavam irregularmente assentadas saíssem da área próxima à represa para preservar a longevidade do povo paulistano. Precisamos medir interesses e fazer uma ponderação sobre qual deve prevalecer; nesse caso, prevaleceu o meio ambiente”, conta Noronha.
Do invisível ao televisionado
Além de se organizar e se adaptar às normas constitucionais e legais, o Poder Judiciário também reflete as mudanças sociais de seu tempo. Da mesma maneira que evoluiu em 30 anos de aplicação da Constituição e das novas leis, o Judiciário também precisou assimilar as mudanças no campo tecnológico, as exigências de transparência e a publicidade dada aos julgamentos.
No centro de alguns desses debates, está a figura do próprio julgador e a sua interação com forças como a mídia e a opinião pública. Segundo o ministro Noronha, o juiz passou de “ilustre desconhecido” do jurisdicionado para uma figura de maior visibilidade, inclusive com a introdução de novas ferramentas como o televisionamento dos julgamentos. No entanto, aponta, essa nova realidade não mudou o comportamento dos magistrados: apenas tornou mais transparente as decisões.
“Havendo ou não o televisionamento, o juiz tem que ser o mesmo: discreto, isento, imparcial, e pensar sempre na repercussão das suas decisões. Portanto, a televisão vem mostrar o que já existia. A TV não criou um novo comportamento no Judiciário brasileiro, apenas revelou o comportamento existente”, afirma Noronha.
Em sentido semelhante, Gueiros Leite lembra que, ultrapassando a simples publicidade garantida por meio dos diários oficiais, a elevação do Judiciário à posição central dos debates no país fez crescer o interesse da mídia sobre os julgamentos, mas é necessário equalizar o princípio constitucional da liberdade de expressão com a veracidade das informações divulgadas.
“Claro que essa divulgação pela imprensa é permitida, em nome da liberdade de expressão, mas não pode ser fake news. Muitas coisas erradas são publicadas, e satanizam a Justiça”, pondera o primeiro presidente.
Do presente ao futuro
Entre o esboço e a realidade, entre o primeiro e o mais recente recurso, entre o julgador invisível e o juiz digital: os últimos 30 anos reservaram ao STJ desafios econômicos, jurídicos e sociais na busca pela consecução de seu papel de guardião do direito federal infraconstitucional. E o que espera o STJ no futuro? Para o ministro Gueiros Leite, a atuação do tribunal deve ser aperfeiçoada, mas nunca suprimida, como ocorreu com o TFR.
Preparando o STJ para os próximos anos, o ministro Noronha projeta um tribunal que selecione melhor as causas verdadeiramente importantes para a sociedade, “que repercutam em todos os rincões do Brasil”, afastando-se definitivamente da atribuição de mero revisor de julgamentos de segundo grau. Para isso, o presidente defende a necessidade de aprovação da proposta de emenda à constituição (PEC) que estabelece o filtro de relevância dos recursos especiais, atualmente em tramitação no Senado.
“Nós temos que saber qual é a causa que não atende apenas o interesse privado, particular, mas a causa que traça uma norma de comportamento geral. Precisamos assegurar os princípios do direito, da livre propriedade, da liberdade de expressão, e garantir os direitos fundamentais, na forma estabelecida na lei. Portanto, se aprovada definitivamente a PEC, o STJ vai se tornar o centro das causas mais importantes para o país, porque a vida que se vive está regulada na legislação infraconstitucional”, prevê Noronha.
Na véspera do aniversário de 30 anos da Constituição, o atual presidente do STJ, João Otávio de Noronha, e o primeiro, Gueiros Leite, dividem visões sobre a história, a evolução e o futuro do tribunal.