Em ação coordenada nacional que conta com a participação de diversas unidades do Ministério Público Federal (MPF) no país, o MPF no Amazonas recomendou às Forças Armadas no estado que se abstenham de promover qualquer comemoração em alusão ao golpe militar de 31 de março de 1964.
O período de quase 21 anos iniciado nesta data é considerado oficialmente, pelo Estado Brasileiro e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como um regime de exceção, durante o qual houve supressão da democracia e dos direitos de reunião, de liberdade de expressão e liberdade de imprensa e da prática de diversos crimes e de violações igualmente reconhecidos pelo Estado, motivo pelo qual não deve ser festejado.
O documento ressalta que eventuais manifestações de comemoração pela data, determinadas pelo presidente Jair Bolsonaro e oficialmente informadas por meio do porta-voz da Presidência da República, serão consideradas atos de improbidade administrativa, uma vez que desrespeitam os princípios da administração pública da moralidade, da legalidade e da lealdade às instituições e vão contra diversos itens da legislação brasileira em vigor. O MPF alerta que os autores de tais atos, sejam civis ou militares, estão sujeitos à pena de perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e multa civil de até cem vezes o valor da remuneração, conforme prevê a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992).
Para o MPF, a homenagem por servidores civis e militares, no exercício de suas funções, ao período histórico no qual a democracia e os direitos de reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa foram apagados viola a Constituição Federal, que consagra a democracia e a soberania popular. No documento, o órgão ressalta ainda que “o Presidente da República se submete à Constituição Federal e às leis vigentes, não possuindo o poder discricionário de desconsiderar todos os dispositivos legais que reconhecem o regime iniciado em 31 de março de 1964 como antidemocrático”.
A recomendação também reforça que a Comissão Nacional da Verdade, criada pelo Estado Brasileiro por meio da Lei 12.528/2011 para apurar graves violações a direitos humanos ocorridos desde 1946 até a promulgação da Constituição Federal de 1988, recomendou a proibição à realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964, já que as investigações realizadas comprovaram que o regime autoritário foi responsável pela ocorrência de graves violações de direitos humanos.
A recomendação do MPF no Amazonas foi encaminhada para a 12 ª Região Militar e para o 2º Grupamento de Engenharia, em Manaus, para a 2ª Brigada de Infantaria de Selva, situada no município de São Gabriel da Cachoeira, e à 16ª Brigada de Infantaria de Selva, no município de Tefé.
Crimes oficialmente reconhecidos – Em diversas oportunidades, o Estado Brasileiro reconheceu, após a promulgação da Constituição de 1988, a ausência de democracia e do cometimento de graves violações aos direitos humanos pelo regime militar. Por meio da Lei n° 9.140 de 1995, foram consideradas mortas as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, estando desaparecidas desde então.
A Comissão Nacional da Verdade também reconheceu, em seu relatório final, a prática de graves violações aos direitos humanos no período entre 1946 e 1988 pelo Estado Brasileiro, considerando o caráter autoritário dos governos impostos e se referindo ao dia 31 de março de 1964 como golpe contra a democracia então vigente.
Em abril de 2014, as Forças Armadas admitiram, por meio de ofício do Ministro de Estado da Defesa, a existência de graves violações de direitos humanos durante o regime militar, registrando que os Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não questionaram as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, por não disporem de “elementos que sirvam de fundamento para contestar os atos formais de reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro”.
No Caso Gomes Lund e Outros, relacionado ao desaparecimento de pessoas no contexto da Guerrilha do Araguaia, na década de 1970, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, declarou, por unanimidade, que o Estado Brasileiro é “responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal”. A Corte também condenou o Estado a adotar medidas de não repetição das violações verificadas.
Também perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela detenção arbitrária, tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog por agentes do Estado, em 25 de outubro de 1975.
Defesa da democracia em outros países – O Brasil também já assumiu obrigações de defesa da democracia em âmbito internacional. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, o Estado Brasileiro assinou a Carta Democrática Interamericana, a qual dispõe que “os povos da América têm direito à democracia e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la”.
No ano passado, o Estado Brasileiro e os Estados Unidos da América defenderam a suspensão da Venezuela da Organização dos Estados Americanos por violação aos preceitos da Carta Democrática Interamericana. O restabelecimento da democracia na Venezuela ainda foi exigido pelo Brasil e outros países pela Declaração do Grupo de Lima, em janeiro deste ano.
Na recomendação encaminhada aos órgãos militares do Amazonas, o MPF assinala que a exigência de respeito à democracia em outros países do continente não é condizente com homenagens a período histórico de supressão da democracia no Brasil e que os deveres assumidos pelo Estado Brasileiro de promover e defender a democracia devem ser efetivos, inclusive pela valorização do regime democrático e repúdio a formas autoritárias de governo.
Infrações disciplinares – Diversos regulamentos das Forças Armadas, que enquadram como infrações ou contravenções disciplinares a participação em manifestações públicas de caráter político-partidário por militares fardados, também são citados na recomendação para demonstrar a ilegalidade das celebrações encorajadas pelo presidente da República, como os Regulamentos Disciplinares da Marinha, da Aeronáutica e do Exército Brasileiro.
O MPF lembra que as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, destinadas à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, não devendo tomar parte em disputas ou manifestações políticas, em respeito ao princípio democrático e ao pluralismo de ideias que rege o Estado brasileiro.
A identificação de eventuais atos e seus participantes e aplicação de punições disciplinares também são medidas recomendadas pelo MPF no documento, bem como a comunicação dos fatos ao órgão para adoção das providências cabíveis. Os órgãos representantes das Forças Armadas no Amazonas têm prazo de 48 horas, a contar do recebimento, para informar a respeito do acatamento da recomendação.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, divulgou ontem (26) nota pública em que atribui ao ato da Presidência da República “enorme gravidade constitucional”, pois representa a defesa do desrespeito ao Estado Democrático de Direito.