O segundo e último dia do seminário internacional Lei Geral de Proteção de Dados: a caminho da efetividade foi marcado por debates envolvendo a regulação, a efetividade e a segurança jurídica da Lei 13.709/2018, que entrará em vigor em 2020. Durante a segunda-feira (27) e na manhã desta terça (28), magistrados e outros operadores do direito, membros do governo e do Congresso Nacional, representantes de empresas e especialistas em geral do Brasil e do exterior se reuniram para discutir o assunto no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.
O evento foi realizado por meio de parceria entre o STJ, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o Centro de Direito, Internet e Sociedade do Instituto Brasiliense de Direito Público (Cedis/IDP) e a FGV Projetos. O seminário teve coordenação científica do ministro do STJ Villas Bôas Cueva, da professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes e do professor do IDP Danilo Doneda.
O objetivo foi debater a implementação efetiva da LGPD, por meio da análise do ordenamento jurídico, e os pontos com maior probabilidade de demandar posicionamento dos tribunais acerca de sua interpretação. O seminário também analisou as práticas correlatas já adotadas em outros países.
Papel fiscalizador
Na abertura do painel com o tema “Enforcement, Estado federativo e segurança jurídica: a importância do modelo institucional para a efetividade da proteção de dados”, a professora Laura Mendes disse que é importante refletir sobre o papel fiscalizador do Estado. “Um dos objetivos do encontro é a discussão acerca da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). É necessário debater sobre quem vai fiscalizar o cumprimento da LGPD”, afirmou.
Outro participante foi o deputado federal Orlando Silva, representante da Câmara dos Deputados e relator da Medida Provisória (MP) 869/2018, que alterou a Lei 13.709/2018 para criar, como órgão da administração pública federal, a ANPD. O parlamentar explicou detalhes da tramitação da MP e de como será avaliada a efetividade dessa iniciativa. “A partir de negociações com o próprio governo, vamos definir um período para a revisão dessa experiência, e uma transição para o modelo que garanta autonomia da ANPD no prazo de dois anos.”
Fechando o painel, o diretor da Unidade Internacional de Proteção de Fluxos de Dados da Comissão Europeia, Bruno Gencarelli, falou sobre a experiência dos países europeus na aplicação e regulação da proteção de dados pessoais, além dos impactos econômicos e sociais que essa medida desencadeou. Ele apresentou um panorama sobre o que tem acontecido nesse ano de vigência do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais na Europa.
Decisões automatizadas
Na sequência, foi a vez do painel com o tema “Algoritmos e regulação: os direitos do titular de dados no âmbito das decisões automatizadas”, moderado pelo professor Danilo Doneda. Ele falou sobre as decisões informatizadas. “Os dados pessoais alimentam, de forma bastante intensa, mecanismos de decisões automatizadas. E, para isso, verificamos que as legislações atuais de dados pessoais estão, cada vez mais, na vanguarda da iniciativa de regular algumas situações em que essas decisões podem ter efeitos jurídicos detectados como nocivos, discriminatórios e limitadores de liberdades” declarou o moderador.
Na opinião da conferencista Yasodara Cordova, pesquisadora do Digital HKS, Belfer Center, e da Universidade de Harvard, é preciso pensar sobre o uso indevido da tecnologia, pois isso pode causar danos para as pessoas. “Os dados que alimentam os algoritmos podem conter determinada discriminação. Isso pode ser que venha a violar os direitos humanos. Temos que avaliar a questão do uso da tecnologia preditiva na coleta de dados pessoais, e como essas informações podem ser utilizadas para reforçar preconceitos.”
A advogada Ana Frazão, professora da Faculdade de Direito da UnB, debateu os riscos e as consequências das decisões automatizadas. “A grande questão de os algoritmos tomarem decisões é que elas podem impactar na vida e no exercício do direito por parte das pessoas. O estabelecimento de padrões é importante, mas pode conter falhas. O problema da ausência de transparência na elaboração dos padrões também deve ser bem avaliado”, ressaltou.
Ao se pronunciar sobre o assunto, a advogada Marcela Mattiuzzo também abordou a discriminação algorítmica. Segundo ela, a tipologia dessa discriminação consiste na ilicitude e no abuso das condutas perpetradas por meio da LGPD. “Generalizações são extremamente comuns, principalmente na área do direito. Mas sempre que uma generalização for problemática, ela deve ser corrigida para não causar discriminação para determinada pessoa, ou um grupo como todo.”
O painel foi integrado também pelo coordenador de Tecnologia da Informação da FGV Projetos, José Leovigildo Coelho. Ele abordou os aspectos técnicos da inteligência artificial e a vetorização dos algoritmos. “A máquina não decide sozinha. É o ser humano que alimenta o sistema com os dados matemático-estatísticos que o computador irá utilizar. Se você desenvolve o algoritmo, você deve avaliar de que forma ele vai alcançar o objetivo para o qual foi proposto. A inteligência artificial nada mais é que a capacidade do computador de aprender, sugerir e se comportar com base em um contexto predefinido”, explicou.
Esquecimento
Encerrando o segundo dia do seminário, o painel com o tema “Memória e esquecimento na internet: um debate sobre esquecimento e desindexação” foi moderado pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão.
“Esse evento prestigia o STJ com um debate muito intenso e profundo sobre a Lei Geral de Proteção de Dados, elevando o conceito do nosso tribunal perante a comunidade jurídica, debatendo um tema de grande relevância. É um motivo de grande satisfação para todos nós que integramos o tribunal. No meu modo de ver, esquecimento e desindexação possuem conceitos e teses diferentes. É importante que, com base nas apresentações precedentes, nós não coloquemos isso no mesmo saco. Eu acho que são situações com requisitos e circunstâncias diferentes”, afirmou o ministro.
A coordenadora da FGV Projetos, Juliana Loss, abordou a perspectiva da resolução de conflitos que serão originados a partir da entrada em vigor da LGPD. “Nós discutimos a proteção de dados, mas também devemos refletir sobre como esses mecanismos poderiam ajudar a solucionar os conflitos originados na própria internet. Temos de oferecer mecanismos aos usuários para que eles mesmos possam atuar de forma independente na resolução dessas demandas. Nós devemos pensar não só no direito, não só no que é certo, mas como nós vamos implementar tudo isso e nos preparar para uma era digital.”
Outro conferencista do painel foi o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Ingo Wolfgang Sarlet, professor de direito do Estado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O magistrado tratou do direito ao esquecimento como parte dos direitos fundamentais. “A LGPD acaba tendo grande relevância pelas próprias consequências ligadas ao seu conceito. O que importa é o seu reconhecimento, ou não, como um direito fundamental do cidadão”, declarou.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e diretor do ITS–Rio, Carlos Affonso Souza, falou sobre o direito ao esquecimento e como isso está causando reflexos no Poder Judiciário. “Acho que esse é um tema importante, uma vez que a LGPD, mesmo trazendo uma série de direitos aos cidadãos, não trata do direito ao esquecimento. Nenhuma decisão judicial pode garantir que exista o esquecimento na sociedade. Ele está ligado, diretamente, à preservação da imagem, privacidade e honra das pessoas. A própria arquitetura da rede de computadores parece que foi feita para manter a lembrança, não para o esquecimento.”
Inserção fundamental
Concluindo os trabalhos, o ministro Villas Bôas Cueva – um dos coordenadores científicos do seminário – destacou a relevância dos debates sobre a regulação da LGPD: “O evento foi bastante amplo e tivemos a discussão de vários tópicos. Esperamos que, com isso, tenhamos contribuído para que esse debate promova a criação, o quanto antes, de uma autoridade independente de proteção de dados pessoais, para que o Brasil possa se integrar no cenário internacional com ganhos inequívocos para a economia do país. Essa inserção no mundo digital é fundamental para que o Brasil se desenvolva”.
Segundo o ministro, “é fundamental que o Poder Executivo também passe a olhar, com a devida importância, a adoção da LGPD e os cuidados que devem ser tomados com essa nova era de proteção da privacidade, tão fundamental para que nós possamos extrair ganhos e eficiência com a nova economia digital. É essencial termos uma maior transparência quanto ao uso dos dados pessoais em outras searas, não estritamente comercial, como a questão política e as fake news. Essa discussão contribuiu para que nós possamos avançar e conseguir implantar a LGPD com sucesso”.
Villas Bôas Cueva informou que as apresentações do evento serão publicadas em uma obra coletiva.
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Para o ministro Villas Bôas Cueva, um dos coordenadores científicos do evento, é essencial haver maior transparência no uso dos dados pessoais – e não só no campo estritamente comercial.