O impacto e a proporção da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) não se traduzem apenas na reorganização geopolítica que trouxe ao mundo novas fronteiras e novos países, no desenvolvimento de inovações bélicas como a bomba atômica ou na criação de instituições como a Organização das Nações Unidas: suas dimensões são percebidas principalmente nos 70 milhões de civis e militares que morreram no conflito, considerado o mais sangrento já visto pela humanidade.
Foi a segunda grande guerra que escreveu na história do mundo nomes como Hitler e Mussolini, que apresentou o terror dos campos de concentração e que criou as condições para o início do período da Guerra Fria. Foi a mesma guerra, todavia, que ofereceu ao mundo os escritos de Anne Frank, a jovem judia que guardou em seu diário os relatos sobre o esconderijo de sua família contra os nazistas na Holanda.
O conflito deixou marcas das mais diversas nos países que dele participaram, entre os quais o Brasil. Uma leitura possível desses espólios pode ser feita por meio dos inúmeros casos que chegaram – e ainda chegam – ao Judiciário. São pequenos recortes da história da guerra, relatados como justificativa ou contexto das questões tratadas nos processos.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a maioria dos processos analisados diz respeito a pensão para ex-combatentes, mas há outras discussões relevantes, como os casos de indenização para seringueiros e para vítimas de ataque de submarino estrangeiro.
Ataque alemão
O Brasil ingressou no conflito em agosto de 1942, quando declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista. Antes, oficialmente, o país mantinha posição de neutralidade, até que embarcações começaram a ser atacadas na costa brasileira por submarinos alemães. Foram, ao todo, 19 barcos alvejados no litoral pelas forças nazistas, levando o então presidente Getúlio Vargas à declaração de guerra, em apoio aos países aliados (como os Estados Unidos e a União Soviética).
Após a entrada do Brasil na guerra, várias embarcações do país continuaram sendo atacadas. Em 1943, no litoral de Cabo Frio (RJ), o barco pesqueiro Shangri-lá foi afundado a tiros de canhão pelo submarino alemão U-199. Os corpos dos pescadores nunca foram encontrados, mas a tia de uma das vítimas ingressou com ação de indenização por danos morais e materiais contra a República Federal da Alemanha.
Além de invocar os depoimentos dos prisioneiros alemães que ocupavam o submarino e confessaram o ataque, a tia do pescador argumentou que, em 2001, o Tribunal Marítimo concluiu que o naufrágio do Shangri-lá foi mesmo provocado pelo submarino alemão.
Em primeira instância, o processo foi extinto sem julgamento do mérito, sob o fundamento de que não seria possível submeter um país soberano à obrigação de pagar indenização por atos de guerra. O caso chegou ao STJ por meio de recurso ordinário e foi julgado pela Quarta Turma.
De acordo com o relator do recurso, ministro aposentado Fernando Gonçalves, ainda que o caso discutisse ato de império de estado estrangeiro – o qual, em tese, não se submete à jurisdição de outro estado soberano –, o país ainda tem, nessas hipóteses, a prerrogativa de renunciar à sua imunidade e submeter-se ao processo.
“Nesse sentido, deve haver a sua citação formal para se manifestar, providência não efetivada no caso concreto, dada a existência de sentença extintiva do feito sem julgamento do mérito, mesmo antes de qualquer manifestação da pretensa ré, República Federal da Alemanha”, concluiu o ministro ao determinar o retorno dos autos à Justiça Federal para a citação do país europeu.
Supremacia estatal
No entanto, em julgamento mais recente sobre o ataque ao barco Shangri-lá (de processo no qual a Alemanha não renunciou à imunidade), a Terceira Turma entendeu não ser possível submeter o país europeu à jurisdição brasileira, em virtude da supremacia estatal. Para o colegiado, o afundamento da embarcação se deu no contexto excepcional da guerra, em que o Brasil se posicionou contra a Alemanha.
“A República Federal da Alemanha foi comunicada do presente feito e expressamente reafirmou sua imunidade à jurisdição nacional, não podendo responder à presente demanda, pois, tendo praticado ato de império, numa ofensiva militar em período de guerra, não se submete ao Poder Judiciário nacional”, afirmou o relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha.
A discussão sobre o alcance da imunidade de jurisdição de estado estrangeiro, nos casos de ato de império ofensivo ao direito internacional da pessoa humana, ainda está em discussão no Supremo Tribunal Federal (Tema 944).
Tropas à guerra
Apesar de ter ingressado oficialmente na Segunda Guerra em 1942, o Brasil não contava à época com uma força militar preparada para o combate em solo europeu. Por isso, muitos críticos duvidavam da capacidade brasileira de enviar homens para o front, motivo pelo qual se dizia que era “mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra”. Por essa razão, o símbolo da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada em 1943 para atuar no conflito, é uma cobra fumando cachimbo.
O Brasil participou da guerra com aproximadamente 25 mil homens, que foram enviados à Europa em 1944. As tropas atuaram principalmente na Itália, em conflitos terrestres e aéreos. Mais de 450 soldados brasileiros morreram nos combates.
Aos ex-combatentes, a Constituição de 1988 garantiu benefícios como pensão especial, aproveitamento no serviço público e aposentadoria com proventos integrais.
O STJ foi acionado para resolver várias questões sobre o pensionamento de guerra, como em 2003, quando a Sexta Turma firmou o entendimento de que o conceito de ex-combatente também compreende a pessoa que, mesmo sem se deslocar até a Europa, tenha participado efetivamente de operações de vigilância e segurança do litoral brasileiro, como integrante da guarnição de ilhas oceânicas ou de unidades que se deslocaram de suas sedes para o cumprimento de missões.
Em 2007, a Terceira Seção rescindiu acórdão que havia julgado improcedente pedido de pensão a militar brasileiro que, durante a guerra, havia participado de missões internas de vigilância litorânea. No julgamento, a seção entendeu ser possível reconhecer a condição de ex-combatente aos integrantes da marinha mercante que tenham participado de, pelo menos, duas viagens em zonas de ataques submarinos.
“O autor realizou mais de duas viagens em zonas de ataques submarinos, o que satisfaz os requisitos legais necessários para a obtenção da almejada pensão especial”, apontou a relatora da ação rescisória, ministra Laurita Vaz.
Guerreiros da borracha
A Segunda Guerra também teve implicações econômicas e sociais dentro das nossas fronteiras. Após a entrada dos Estados Unidos no conflito, países asiáticos cortaram o fornecimento de borracha aos americanos, os quais firmaram um acordo com o Brasil para manter o suprimento da matéria-prima e garantir a produção de sua indústria bélica.
A necessidade de cumprir o acordo levou o Brasil a iniciar uma campanha de recrutamento de pessoas, principalmente da região Nordeste, para que trabalhassem na extração do látex na região amazônica.
Formavam-se, assim, os chamados “soldados da borracha”: convocados à Amazônia sob a promessa de bons salários, benefícios trabalhistas e porções de terra, os mais de 50 mil seringueiros que mergulharam na floresta encontraram, na realidade, uma série de doenças – como a malária –, o desamparo por parte do governo e a submissão a regimes de trabalho análogos à escravidão. Ao final da guerra, mais de 35 mil soldados dos seringais haviam morrido no coração amazônico.
Apenas 45 anos após o término da guerra, a Constituição de 1988 assegurou aos seringueiros ou dependentes carentes pensão mensal vitalícia de dois salários mínimos. Mais recentemente, em 2014, uma Emenda à Constituição fixou indenização de R$ 25 mil.
Apesar do reconhecimento tardio das indenizações pelo poder público, uma série de demandas judiciais continuam em trâmite. Em 2016, a Primeira Turma determinou o retorno à primeira instância de ação coletiva proposta pela Associação dos Soldados da Borracha, Seringueiros e Familiares do Estado de Rondônia com o objetivo de condenar solidariamente o Brasil e os Estados Unidos pela exploração do trabalho em seringais na Segunda Guerra. O pedido da associação é de R$ 896 mil em danos morais e materiais por seringueiro.
Também em 2016, a Primeira Turma manteve acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que garantiu a um soldado da borracha o recebimento da pensão mensal vitalícia prevista na Constituição. No recurso especial, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) alegava que o benefício não poderia ser pago com base apenas em prova testemunhal, especialmente depois da publicação da Lei 9.711/1998, que passou a exigir prova material do trabalho como seringueiro.
Em voto acompanhado pela maioria do colegiado, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho afirmou que, no caso dos autos, a justificação judicial do ex-seringueiro foi homologada ainda na vigência do artigo 3º da Lei 7.986/1989, que permitia a comprovação da prestação dos serviços no período de guerra por todos os meios de prova, inclusive testemunhal.
Segundo o ministro Napoleão, a precariedade nas relações de trabalho e as condições insalubres experimentadas pelos soldados da borracha ainda são presentes na vida de milhares de trabalhadores das regiões Norte e Nordeste do país. Para o ministro, se atualmente a informalidade já dificulta a garantia dos direitos previdenciários a essas pessoas, pior situação ocorria nos anos de guerra, quando milhares de brasileiros se lançaram ao trabalho de extração do látex.
“Impor a esses trabalhadores árduos obstáculos burocráticos à concessão de seu benefício contraria não só os princípios constitucionais que norteiam os benefícios previdenciários, como também contraria a lógica e a realidade dos fatos e os postulados humanitários”, concluiu o ministro ao manter a pensão ao ex-seringueiro.
Base militar
Em janeiro de 1943, quase um ano após o Brasil declarar guerra aos países do Eixo, o presidente Getúlio Vargas se reuniu em Natal com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt. O objetivo do encontro era a escolha de áreas litorâneas brasileiras que servissem de base para as forças militares dos dois países.
Um dos locais selecionados pelos líderes foi um terreno de mais de 5 milhões de metros quadrados no litoral do Espírito Santo, na região onde atualmente está o aeroporto de Vitória. A área foi ocupada pelo governo brasileiro em 1943, mas a ação de desapropriação foi ajuizada somente em 1948. Naquele ano, teve início uma disputa de 75 anos com os proprietários para a apuração do valor justo a ser pago aos expropriados, até que a controvérsia foi resolvida, em 2017, pela Segunda Turma.
No julgamento, o colegiado restabeleceu decisão do extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR), transitada em julgado em 1986, que concluiu o procedimento de liquidação da sentença proferida em 1953 e confirmada pelo TFR em 1955. Em virtude desse quadro, a turma considerou que uma decisão posterior do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que determinou nova perícia nos autos violou a coisa julgada ao tentar definir novamente os valores que deveriam ser pagos.
O relator do recurso, ministro Og Fernandes, também destacou a singularidade do caso, que tramitou em várias instâncias do Judiciário e foi regido por três Constituições e por três Códigos de Processo Civil.
“Não fosse trágico o fato de um processo judicial de desapropriação já tramitar, sem uma resposta definitiva, por 70 anos, vale como estudo sobre a sucessão legislativa e de órgãos jurisdicionais no panorama do ordenamento pátrio e das instituições judiciárias brasileiras”, declarou o relator.
Perseguição e tortura
Os registros históricos narram uma série de perseguições a imigrantes alemães, italianos e japoneses e a seus descendentes no Brasil durante os anos do conflito. Uma dessas pessoas – o descendente germânico Antônio Kliemann – teria sido presa e torturada por mais de uma vez entre 1942 e 1944. Após a última detenção, Kliemann voltou para casa transtornado, foi internado em um sanatório em Porto Alegre e, anos depois, cometeu suicídio.
Por causa desses episódios, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região condenou solidariamente a União e o Estado de Santa Catarina ao pagamento de R$ 1 milhão em danos morais e materiais à família. Contra a decisão, a União argumentou que a perseguição foi fundada no fato de que a vítima era supostamente simpatizante do nazismo, em uma época de guerra, em que a Alemanha e o Brasil figuravam em lados diferentes.
Para a União, tratava-se na realidade de um caso de sectarismo étnico, no qual não se provou a participação do Estado.
O relator do recurso da União na Segunda Turma, ministro Humberto Martins, destacou que os autos apontaram que a vítima foi presa e torturada por várias vezes sem o conhecimento da família e teve sequelas físicas e transtornos mentais simplesmente em razão de sua ascendência alemã.
“Ressalto que de nada ajuda a União a alegação de que na época dos fatos estava o Brasil em guerra, pois nada, nada neste mundo pode justificar a tortura, que nos avilta a todos, que nos é depreciativa da qualidade de seres humanos, que é inimaginável seja em qual situação for, que é pior, muito pior, que a própria pena de morte permitida em nosso Estado em tempos de guerra”, afirmou o ministro.
Apesar de reconhecer a imprescritibilidade da compensação dos danos morais pela tortura, a turma entendeu ter havido a prescrição do direito à indenização pelos danos materiais. A condenação ficou em R$ 500 mil.
Até hoje alguns eventos da guerra repercutem em processos judiciais, como em demandas sobre pensões a ex-combatentes e indenizações a seringueiros da Amazônia.