Ângela espera que o entendimento do STJ leve as empresas aéreas a mudar de atitude.
A bancária Ângela Lima Leal estava em São Paulo, em 2015, prestes a tomar o avião, quando descobriu que seu bilhete de retorno para Brasília havia sido cancelado pela companhia aérea. A viagem, que duraria menos de duas horas, acabou levando 18, dentro de um ônibus.
Imprevistos em viagens aéreas não são raros, mas o cancelamento da reserva sem nenhum aviso prévio é uma surpresa muito além do aceitável. E o motivo, no caso de Ângela, deixou-a especialmente revoltada: seu bilhete foi cancelado porque ela não compareceu para o trecho de ida.
Ângela havia adquirido os voos de ida e volta na mesma operação, com meses de antecedência, mas depois encontrou um horário de ida mais conveniente. Como a remarcação dos bilhetes anteriores acabaria custando mais, optou por comprar um novo bilhete de ida e retornar usando o trecho adquirido tempos atrás.
Embora os bilhetes comprados inicialmente tivessem sido pagos, a companhia aérea, em virtude da não apresentação da passageira no voo de ida (no show), cancelou automaticamente o bilhete de retorno adquirido na mesma compra. Essa é uma prática comum das empresas no Brasil e em outros países, e muitas vezes o consumidor acaba levando sua insatisfação para os tribunais.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu, em ambas as turmas de direito privado, que essa conduta das companhias aéreas viola pelo menos dois dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC): os artigos 39 e 51.
Vulneráveis
Ângela conta que levou um susto quando, já no aeroporto, foi informada pela companhia sobre o cancelamento de seu bilhete em razão do no show na ida.
A compra de um novo bilhete na hora não valeria a pena, segundo ela, pois o preço de balcão era muito superior ao que havia pago. Restou ir de ônibus e enfrentar uma viagem 16 horas mais longa.
“Como consumidores, diante das companhias aéreas, nós ficamos vulneráveis e sem ter como brigar. Quando você compra a passagem, é um contrato apenas de adesão. O consumidor não tem como discutir e negociar nada”, diz Ângela sobre a sua experiência.
Situação semelhante foi analisada pela Terceira Turma do STJ em setembro de 2018. No caso, a consumidora comprou passagens de ida e volta; por motivos pessoais, não utilizou a ida e, quando tentou retornar, não conseguiu usar o bilhete, tendo de fazer a viagem de ônibus.
Na ação, ela buscou ressarcimento dos gastos e compensação por danos morais.
Segundo o relator do recurso no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, a previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida, é rechaçada pelo CDC, cabendo ao Poder Judiciário o restabelecimento do necessário equilíbrio contratual.
“Obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, artigo 51, IV). Ademais, a referida prática também configura a chamada ‘venda casada’, pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do ‘trecho de volta’ à utilização do ‘trecho de ida’ (CDC, artigo 39, I).”
Para o colegiado, o pretexto de maximização do lucro não autoriza as empresas a adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável da relação – o consumidor.
“Quando observamos decisões como essa nos sentimos amparados como consumidores. Sem decisões como a do STJ, o consumidor nunca terá proteção. As empresas acabam se permitindo fazer essas coisas. O que para elas é apenas uma alteração no balancete, para quem sofre, pode ser tudo”, afirma Ângela.
Venda casada
Em outro processo, analisado pela Quarta Turma em 2017, o colegiado destacou que a prática de condicionar a utilização do bilhete de retorno ao embarque no trecho da ida configura venda casada.
“Ainda que o valor estabelecido no preço da passagem tenha sido efetivamente promocional, a empresa aérea não pode, sob tal fundamento, impor a obrigação de utilização integral do trecho de ida para validar o de volta, pelo simples motivo de que o consumidor paga para ir e para voltar, e, porque pagou por isso, tem o direito de se valer do todo ou de apenas parte do contrato, sem que isso, por si só, possa autorizar o seu cancelamento unilateral pela empresa aérea”, explicou o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso no colegiado.
No momento de perplexidade, o consumidor muitas vezes não sabe direito o que fazer. Ângela conta que chegou a pensar em parcelar e adquirir o bilhete excessivamente caro oferecido após o cancelamento, mas preferiu enfrentar o desconforto do ônibus.
“A questão das companhias aéreas é complexa. São poucas no mercado, e muitas vezes não temos escolha. Se eu precisar, vou ter que comprar; não há muita escolha”, diz ela.
As situações de rescisão unilateral do contrato, segundo o ministro Salomão, podem gerar dano moral a ser indenizado, como no caso da Quarta Turma em que a consumidora também teve que retornar de ônibus ao descobrir que o bilhete de volta havia sido cancelado.
Comportamento abusivo
“A falta de razoabilidade da prática questionada se verifica na sucessão de penalidades para uma mesma falta cometida pelo consumidor. É que o não comparecimento para embarque no primeiro voo acarreta outras penalidades, que não apenas o abusivo cancelamento do voo subsequente”, comentou Salomão, lembrando que o passageiro, ao não se apresentar, já perde a passagem daquele voo ou paga uma multa para remarcá-lo.
A indenização por danos morais foi mantida pelo STJ no valor de R$ 25 mil, arbitrado pelo tribunal estadual tendo em vista a aflição e o transtorno causado à consumidora.
Ângela avalia que até mesmo o trabalho de mover um processo judicial acaba por incentivar as companhias a persistir na prática abusiva, pois entrar na Justiça não é simples para muitos consumidores.
“Tempo é dinheiro, e para juntar todos os documentos, comprovar a situação vivida… É preciso muita disposição para se dedicar a isso. Muitas vezes você tem que parar de trabalhar, negociar uma folga; tudo isso gera um ônus muito grande para o consumidor.”
Ela espera que a jurisprudência do STJ venha a acabar em definitivo com o cancelamento automático de bilhetes em tais situações, e que os passageiros enfim tenham a garantia de poder usufruir, sem transtornos, do serviço pelo qual pagaram previamente.
A bancária Ângela Lima Leal viveu o dissabor de ter uma reserva cancelada apenas porque não usou o bilhete de ida – prática das empresas que o STJ considera ofensiva aos direitos do consumidor.