Comunidades Tradicionais
17 de Agosto de 2021 às 13h35
Revogação da Convenção 169 da OIT pelo Brasil é inconstitucional e ineficaz, apontam juristas e membros do MPF
Os efeitos da eventual denúncia do tratado de direitos a povos tradicionais foram debatidos durante seminário virtual realizado nessa segunda-feira (16)
Foto: Reprodução Youtube
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) não pode ser denunciada validamente. Esse foi o tom do debate durante o webinário “Convenção 169/OIT: vigor ou denúncia? Os impactos da eventual saída do Brasil do tratado internacional que garante direitos a povos e comunidades tradicionais”, realizado nessa segunda-feira (16). Promovido pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), o evento virtual reuniu juristas e membros do MPF para debater o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021. A proposta autoriza o presidente da República a denunciar a Convenção e, com isso, deixar de cumprir uma série de obrigações assumidas perante a comunidade internacional para assegurar a participação e proteção das populações tradicionais.
Sob o argumento de que “a legislação brasileira não necessita de nenhuma complementação” e que a Convenção 169 não supera a Constituição Federal, o que a torna “supérflua”, o texto do projeto de decreto legislativo é, na visão dos expositores que participaram do evento da 6CCR, mais uma tentativa de dirimir a conquista de direitos dos povos tradicionais. Para a subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6CCR, Eliana Torelly, é fundamental a participação do Ministério Público e de toda a sociedade para frear movimentos com esse intuito. “Para nós, quanto mais pessoas estiverem envolvidas nesse debate, mais enriquecedora e efetiva se torna a nossa atuação”, ponderou ao abrir o evento.
No mesmo sentido foi a exposição da ex-procuradora federal dos Diretos do Cidadão Deborah Duprat. Na avaliação da jurista, na hipótese de uma revogação da participação do Brasil na Convenção 169, o país enfrentaria um problema tanto na esfera nacional (quanto à inconstitucionalidade) quanto internacionalmente (quanto à inconvencionalidade). Segundo ela, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já possui precedentes a respeito da inutilidade da possível saída do país da Convenção da OIT, “porque todos os seus pressupostos seguiriam surtindo efeito com amparo em outros documentos internacionais”.
Duprat citou como exemplo o julgamento do caso do povo Saramaka versus Suriname em 2007. Na ocasião, a Corte entendeu que esse país violou o direito à proteção judicial do povo tribal ao não garantir a ele acesso efetivo à justiça para a proteção de seus direitos fundamentais. “A Corte entendeu que era preciso assegurar a eles direitos territoriais, entendimento esse em decorrência de uma larga jurisprudência. Essa decisão mostrou que é preciso haver não só a consulta, mas o consentimento livre, prévio e informado, porque nesse momento a Corte já mostrava como esses recursos eram importantes para a existência física e cultural desse povo”, esclareceu.
Segundo a ex-PFDC, o Suriname não ser signatário da Convenção 169/OIT foi irrelevante, uma vez que a obrigação de consulta prévia às comunidades tradicionais está presente em diversos estatutos aos quais o país já havia aderido. A situação, na avaliação de Duprat, se assemelha ao que poderia acontecer ao Brasil numa possível denúncia ao instrumento jurídico. “O diálogo que a 169 enseja também está presente em outros documentos, nos quais se reconhece a diversidade nos Estados nacionais, o respeito amplo à interculturalidade, ao diálogo entre as culturas e a necessidade de assegurar aos diferentes povos projetos próprios de desenvolvimento”, pontuou.
Direito de existir – Ratificada pelo Brasil em 2002, a Convenção 169 é o único tratado no sistema multilateral que aborda de forma específica e abrangente os direitos dos povos indígenas e tribais. No entanto, para o professor doutor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Frederico Marés, ela é somente um bom instrumento jurídico que reconhece a preexistência de direitos já garantidos aos povos tradicionais.
Segundo Marés, o tratado é embasado no princípio de que os povos organizados possuem direitos, entre eles o de serem consultados sobre decisões estatais que influenciem em seu modo de vida, porque possuem um direito prévio de existência. “Ela [a Convenção169] não é uma constituição de direitos aos povos e sim um reconhecimento de povos em Estados nacionais”, pontuou.
Ao avaliar a justificativa para a denúncia da Convenção, o professor afirmou que a interpretação dos autores do projeto legislativo sobre essa prerrogativa é totalmente equivocada. “Na leitura dessa e de outras normas internacionais, fica claro que a denúncia só é possível quando a Convenção pode vir a ser limitadora de direitos e, não só é insuficiente, como pode atrapalhar o exercício de direitos dos povos tradicionais”, não sendo essa a situação atual, esclareceu.
Discriminação – Ao lembrar que, recentemente, o Brasil se tornou parte da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia classificou a tentativa de retirar o país do tratado da OIT como uma violação frontal à Constituição e uma forma de racismo. “Tirar do cenário brasileiro a Convenção 169, que é aplicável a povos indígenas e tribais, é, portanto, um desejo de retirar deles esse direito. É uma afronta direta ao preceito que proíbe a discriminação racial”, apontou Maia.
Participaram também como expositores os membros do Ministério Público Federal Marcia Brandão Zollinger, André de Carvalho Ramos, Felício de Araújo Pontes Júnior, Fabiana Keylla Schneider, Julio José Araújo Junior, Edmundo Antonio Dias Netto Junior, Leandro Mitidieri Figueiredo, Gustavo Kenner Alcântara e Yuri Corrêa da Luz. De modo geral, os expositores afirmaram que o PDL 177/2021 não é um caso isolado e vem acompanhado de outras iniciativas de enfraquecimento da proteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento ecologicamente sustentável, sob o argumento da prevalência de outros valores como o progresso econômico.
O procurador da República e membro do Grupo de Trabalho Quilombos da 6CCR Walter Claudius Rothenburg, que coordenou o evento, destacou que “a ameaça à Convenção reclama estratégias consistentes de mobilização”. Ele explicou que todas as considerações e apontamentos irão subsidiar a elaboração de uma nota técnica contrária à tramitação do PDL.
A íntegra do evento pode ser acessada no Canal do MPF no Youtube.
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Revogação da Convenção 169 da OIT pelo Brasil é inconstitucional e ineficaz, apontam juristas e membros do MPF
Os efeitos da eventual denúncia do tratado de direitos a povos tradicionais foram debatidos durante seminário virtual realizado nessa segunda-feira (16)
Foto: Reprodução Youtube
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) não pode ser denunciada validamente. Esse foi o tom do debate durante o webinário “Convenção 169/OIT: vigor ou denúncia? Os impactos da eventual saída do Brasil do tratado internacional que garante direitos a povos e comunidades tradicionais”, realizado nessa segunda-feira (16). Promovido pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), o evento virtual reuniu juristas e membros do MPF para debater o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021. A proposta autoriza o presidente da República a denunciar a Convenção e, com isso, deixar de cumprir uma série de obrigações assumidas perante a comunidade internacional para assegurar a participação e proteção das populações tradicionais.
Sob o argumento de que “a legislação brasileira não necessita de nenhuma complementação” e que a Convenção 169 não supera a Constituição Federal, o que a torna “supérflua”, o texto do projeto de decreto legislativo é, na visão dos expositores que participaram do evento da 6CCR, mais uma tentativa de dirimir a conquista de direitos dos povos tradicionais. Para a subprocuradora-geral da República e coordenadora da 6CCR, Eliana Torelly, é fundamental a participação do Ministério Público e de toda a sociedade para frear movimentos com esse intuito. “Para nós, quanto mais pessoas estiverem envolvidas nesse debate, mais enriquecedora e efetiva se torna a nossa atuação”, ponderou ao abrir o evento.
No mesmo sentido foi a exposição da ex-procuradora federal dos Diretos do Cidadão Deborah Duprat. Na avaliação da jurista, na hipótese de uma revogação da participação do Brasil na Convenção 169, o país enfrentaria um problema tanto na esfera nacional (quanto à inconstitucionalidade) quanto internacionalmente (quanto à inconvencionalidade). Segundo ela, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já possui precedentes a respeito da inutilidade da possível saída do país da Convenção da OIT, “porque todos os seus pressupostos seguiriam surtindo efeito com amparo em outros documentos internacionais”.
Duprat citou como exemplo o julgamento do caso do povo Saramaka versus Suriname em 2007. Na ocasião, a Corte entendeu que esse país violou o direito à proteção judicial do povo tribal ao não garantir a ele acesso efetivo à justiça para a proteção de seus direitos fundamentais. “A Corte entendeu que era preciso assegurar a eles direitos territoriais, entendimento esse em decorrência de uma larga jurisprudência. Essa decisão mostrou que é preciso haver não só a consulta, mas o consentimento livre, prévio e informado, porque nesse momento a Corte já mostrava como esses recursos eram importantes para a existência física e cultural desse povo”, esclareceu.
Segundo a ex-PFDC, o Suriname não ser signatário da Convenção 169/OIT foi irrelevante, uma vez que a obrigação de consulta prévia às comunidades tradicionais está presente em diversos estatutos aos quais o país já havia aderido. A situação, na avaliação de Duprat, se assemelha ao que poderia acontecer ao Brasil numa possível denúncia ao instrumento jurídico. “O diálogo que a 169 enseja também está presente em outros documentos, nos quais se reconhece a diversidade nos Estados nacionais, o respeito amplo à interculturalidade, ao diálogo entre as culturas e a necessidade de assegurar aos diferentes povos projetos próprios de desenvolvimento”, pontuou.
Direito de existir – Ratificada pelo Brasil em 2002, a Convenção 169 é o único tratado no sistema multilateral que aborda de forma específica e abrangente os direitos dos povos indígenas e tribais. No entanto, para o professor doutor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Frederico Marés, ela é somente um bom instrumento jurídico que reconhece a preexistência de direitos já garantidos aos povos tradicionais.
Segundo Marés, o tratado é embasado no princípio de que os povos organizados possuem direitos, entre eles o de serem consultados sobre decisões estatais que influenciem em seu modo de vida, porque possuem um direito prévio de existência. “Ela [a Convenção169] não é uma constituição de direitos aos povos e sim um reconhecimento de povos em Estados nacionais”, pontuou.
Ao avaliar a justificativa para a denúncia da Convenção, o professor afirmou que a interpretação dos autores do projeto legislativo sobre essa prerrogativa é totalmente equivocada. “Na leitura dessa e de outras normas internacionais, fica claro que a denúncia só é possível quando a Convenção pode vir a ser limitadora de direitos e, não só é insuficiente, como pode atrapalhar o exercício de direitos dos povos tradicionais”, não sendo essa a situação atual, esclareceu.
Discriminação – Ao lembrar que, recentemente, o Brasil se tornou parte da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia classificou a tentativa de retirar o país do tratado da OIT como uma violação frontal à Constituição e uma forma de racismo. “Tirar do cenário brasileiro a Convenção 169, que é aplicável a povos indígenas e tribais, é, portanto, um desejo de retirar deles esse direito. É uma afronta direta ao preceito que proíbe a discriminação racial”, apontou Maia.
Participaram também como expositores os membros do Ministério Público Federal Marcia Brandão Zollinger, André de Carvalho Ramos, Felício de Araújo Pontes Júnior, Fabiana Keylla Schneider, Julio José Araújo Junior, Edmundo Antonio Dias Netto Junior, Leandro Mitidieri Figueiredo, Gustavo Kenner Alcântara e Yuri Corrêa da Luz. De modo geral, os expositores afirmaram que o PDL 177/2021 não é um caso isolado e vem acompanhado de outras iniciativas de enfraquecimento da proteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento ecologicamente sustentável, sob o argumento da prevalência de outros valores como o progresso econômico.
O procurador da República e membro do Grupo de Trabalho Quilombos da 6CCR Walter Claudius Rothenburg, que coordenou o evento, destacou que “a ameaça à Convenção reclama estratégias consistentes de mobilização”. Ele explicou que todas as considerações e apontamentos irão subsidiar a elaboração de uma nota técnica contrária à tramitação do PDL.
A íntegra do evento pode ser acessada no Canal do MPF no Youtube.
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