Direitos do Cidadão
17 de Maio de 2021 às 18h10
MPF, instituições e sociedade debatem em audiência pública o futuro do Cais do Valongo
Procuradoria expediu recomendação para IPHAN abrir consulta pública sobre projeto do Centro de Interpretação do sítio Patrimônio Mundial
Imagem extraída da audiência pública – que foi realizada via videoconferência
O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro – MPF/RJ promoveu, no último dia 12 de maio, a audiência pública virtual “Cais do Valongo, patrimônio mundial: o que está sendo feito?”. Esta é a terceira audiência pública realizada pelo MPF desde 2017 para debater as medidas de conservação e valorização do sítio arqueológico declarado pela Unesco como “a mais importante evidência física associada à chegada histórica de africanos escravizados no continente americano”.
A audiência está disponibilizada no Canal do MPF no YouTube e contou com a participação de mais de 150 pessoas, incluindo parlamentares, membros dos Conselhos Estadual e Municipal do Negro, pesquisadores do tema e representantes das principais organizações culturais que atuam na região da Pequena África, onde está localizado o Valongo. Foram convidados e prestaram informações sobre as ações desenvolvidas na área o Secretário Municipal de Cultura, Marcus Faustino, o Superintendente do IPHAN no Rio de Janeiro, Olav Schrader, o presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto – CDURP, Gustavo Guerrante, e o diretor de projetos do Instituto de Desenvolvimento e Gestão – IDG, Robson Almeida. A Fundação Cultural Palmares também acompanhou a audiência.
A audiência pública foi coordenada pelos procuradores da República Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos, do Núcleo do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF/RJ. Na abertura, a coordenadora do Setor de Cultura da UNESCO no Brasil, Isabel de Paula, destacou que o Cais do Valongo transcende o papel de patrimônio da humanidade, representando principalmente um chamado à reflexão para que a história não seja esquecida e o poder público adote medidas de erradicação da discriminação e do racismo.
Na primeira mesa da audiência, o Secretário Municipal de Cultura, Marcus Faustino, a presidente do Instituto Rio-Patrimônio da Humanidade – IRPH, Laura di Blasi, o presidente do CDURP, Gustavo Guerrante, o Diretor do Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira – MUHCAB, Leandro Santanna, e o diretor de projetos do Instituto de Desenvolvimento e Gestão – IDG, Robson Almeida, prestaram informações sobre as ações de conservação e valorização do sítio arqueológico executadas pela Prefeitura e pelo IDG. Faustino e Almeida registraram também a concepção de “museu de território” adotada pelo Município em relação à Pequena África. Di Blasi, por sua vez, informou sobre a mudança do acervo arqueológico da Gamboa para o Galpão de Docas, e sobre o empréstimo de parte deste acervo à UERJ, para viabilização da pesquisa histórica durante as obras de reforma do Galpão.
A segunda mesa foi direcionada à apresentação do Projeto Executivo de Arquitetura, Restauro e Complementares do bem tombado nacional Antigas Docas D. Pedro II/André Rebouças, onde será instalado o Centro de Interpretação do Cais do Valongo e o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana – LAAU, com o acervo de cerca de 1,3 milhões de peças arqueológicas resgatadas durante as obras de reurbanização da zona portuária. Neste painel, foi apresentada uma visão geral do projeto pela empresa contratada pelo IPHAN, a GEOMETRIE Projetos e Serviços de Arquitetura e Urbanismo Ltda., seguida de considerações do IPHAN e do IRPH.
Abertas as manifestações orais do público, a vereadora Thais Ferreira, coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Pequena África, apresentou diversos questionamentos aos expositores, destacando a necessidade de abertura de canais de participação do público na elaboração e no debate sobre o projeto, bem como sobre as medidas a serem adotadas para apoio e fomento das instituções e grupos culturais negros atuantes no entorno do espaço do Cais do Valongo. Após, o presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Negro, Luiz Eduardo Oliveira Negroogum, reafirmou a participação dos movimentos negros na candidatura do Cais do Valongo ao título de patrimônio da humanidade, destacando que esses mesmos movimentos não foram consultados quando da elaboração do projeto arquitetônico, o que perpetua uma prática de racismo estrutural.
O arquiteto Antônio Zagato apontou que o projeto apresentado durante a audiência carece de maior detalhamento, ressaltando ainda sua preocupação com o comprometimento da monumentalidade do edifício projetado por André Rebouças. Gracy Mary Moreira, presidente da Organização Cultural Remanescentes da Tia Ciata, ressaltou a necessidade de se garantir a participação dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada na elaboração do projeto, especialmente considerando que a obtenção do título de patrimônio da humanidade foi oportunizada pela carta de recomendação assinada por esses mesmos movimentos. Acrescentou que o centro de interpretação deve refletir o legado da ancestralidade africana, que não é contemplado por um projeto “futurístico”.
Carlos Eugênio Líbano Soares, historiador e professor da UFRJ, rememorou os diversos “apagamentos” sofridos pelo Cais do Valongo, seja historicamente, pela construção do Cais da Imperatriz, seja contemporaneamente por omissões das instituições envolvidas. Fátima Malaquias, representante do COMDEDINE – Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro – ressaltou que deve ser mantido o protagonismo dessa entidade, que foi fundamental para a defesa do Cais do Valongo e evitou que o monumento fosse descaracterizado. O vice-presidente do COMDEDINE, Bruno Franco de Jesus, endossou as colocações de Fátima Malaquias e frisou que o território da Pequena África deve ser enxergado como um todo integrado, com o Museu José Bonifácio, o Instituto Pretos Novos e o próprio Cais do Valongo. Acrescentou, ainda, que a construção do corredor cultural na Pequena África deve atentar não apenas ao interesse privado, mas também à geração de renda da comunidade negra, cuja vocação turística deve ser orientada pelo olhar da própria comunidade, através de seus movimentos organizados.
A defensora pública federal Rita Oliveira e o advogado Humberto Adami, do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA ressaltaram em suas falas a importância da participação popular na elaboração do projeto, como medida de justiça de transição.
Encerradas as manifestações do público e após seis horas de audiência, os procuradores Sergio Suiama e Jaime Mitropoulos concluíram a audiência com as propostas de encaminhamento que constam da Recomendação MPF/PR-RJ-22º Ofício nº 02, expedida na data de hoje, 17 de maio.
Recomendação expedida
Na Recomendação, os procuradores do MPF notificam o IPHAN a: a) reinstalar imediatamente o Comitê Gestor do Valongo, instituído pela Portaria nº 360, de 30 de agosto de 2018; b) prorrogar o prazo de vigência do contrato celebrado com a empresa GEOMETRIE Projetos e Serviços de Arquitetura e Urbanismo Ltda. em pelo menos 60 dias; c) marcar, de imediato, visita técnica ao imóvel de Docas Pedro II/André Rebouças, convidando representantes das organizações culturais que atuam na região, pesquisadores acadêmicos e os conselhos estadual e municipal do negro (CEDINE e COMDEDINE), a fim de que a empresa contratada possa apresentar in loco sua proposta de adaptação e restauração do prédio e discuti-la com a população interessada; d) disponibilizar previamente, a todos os interessados, documentos que detalham o projeto que vem sendo elaborado; e) abrir consulta pública online, com prazo mínimo de 30 dias para recebimento de contribuições técnicas a respeito do projeto executivo em elaboração por parte da empresa GEOMETRIE.
A Recomendação também notifica a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro a promover a integração e coordenação dos diversos órgãos, secretarias municipais e organizações envolvidas na proteção, conservação e valorização do sítio arqueológico do Valongo e de sua zona de amortecimento (“Pequena África”) e a desenvolver ações de apoio e fomento às organizações culturais afro-brasileiras que atuam na região da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, bem como ao desenvolvimento do turismo de base comunitária.
O MPF também recomendou ao Instituto de Desenvolvimento e Gestão – IDG que disponibilize, em sua página na Internet, a prestação de contas e os relatórios das atividades desenvolvidas no âmbito dos projetos referentes ao sítio arqueológico do Cais do Valongo, e que, a partir de agora, atue em rede e cooperação com as organizações culturais e comunitárias afro-brasileiras que já desenvolvem ações na região da Pequena África, assegurando-lhes o protagonismo devido no que se refere à promoção de sua cultura.
Por fim, os procuradores recomendaram à Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto – CDURP que apresente ao MPF, no prazo de 90 dias proposta de solução definitiva para o problema dos periódicos alagamentos verificados na área do sítio arqueológico do Cais do Valongo, e conserve adequadamente o sítio arqueológico e seu entorno, mantendo a área limpa, sinalizada e com segurança permanente.
Na Recomendação, os procuradores da República Sergio Suiama e Jaime Mitropoulos enfatizam que a UNESCO considera o Cais do Valongo como um sítio de consciência, que contém fortes e tangíveis associações a um dos mais terríveis crimes da humanidade: a escravidão de centenas de milhares de pessoas, criando a maior migração forçada da História.
Os procuradores também registram que “a configuração arquitetônica projetada para o Galpão de Docas Pedro II/André Rebouças, bem como os usos e divisão de espaços propostos impactarão diretamente a fruição cultural do futuro Centro de Interpretação de um dos mais significativos lugares de memória da diáspora africana nas Américas”.
Projetado pelo engenheiro negro abolicionista André Rebouças (1838-1898), o galpão de Docas foi construído sem a utilização de mão de obra escravizada.
Veja aqui a íntegra da Recomendação expedida.
A gravação da audiência pública está disponível no Canal MPF no Youtube. Clique aqui para acessá-la: https://www.youtube.com/watch?v=B9bWNtFUou4&list=PLbbVbiVtNJf1HOSJfVlDUrP8qXnRJ-diV&index=9.
Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República no Rio de Janeiro
twitter.com/MPF_PRRJ
Atendimento à imprensa: prrj-ascom@mpf.mp.br
Canal no Telegram: https://t.me/mpfrj