Direitos do Cidadão
31 de Março de 2021 às 12h36
MPF, MPSP e MPT divulgam relatório final sobre participação da Volkswagen na repressão durante regime militar
Com 64 páginas, material esclarece como a empresa se envolveu com a polícia política e ajudou a violar direitos humanos
Foto: Volkswagen
“Não me lembro de chorarmos pelo desaparecimento da democracia.” Esta frase traduz o posicionamento de uma das maiores empresas sediadas no Brasil durante a ditadura militar (1964 – 1985) e foi dita por Carl Hahn em uma entrevista à emissora alemã Das Erst. Ele, que chegou a ser presidente do grupo Volkswagen AG na Alemanha de 1982 a 1993, era diretor de vendas na época retratada pelo relatório “Direitos Humanos, Empresas e Justiça de Transição: o Papel da Volkswagen na Repressão Política Durante a Ditadura Militar”, elaborado pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
O trabalho foi iniciado em 2015 com uma representação feita à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), do MPF em São Paulo, e à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e Inclusão Social (PJDH), do MPSP, por 32 representantes, incluindo dez centrais sindicais, entidades, sindicatos e pessoas físicas. Segundo eles, a Volkswagen teria participado ativamente do aparato repressor durante a ditadura militar. Foram abertos então dois inquéritos para apurar os fatos, aos quais posteriormente se somou um terceiro, do MPT.
Os três procedimentos resultaram em um termo de ajustamento de conduta (TAC), firmado no ano passado entre os órgãos ministeriais e a Volkswagen. Com o acordo, a empresa deixa de ser alvo de possíveis ações judiciais desde que cumpra algumas condições: publicar uma declaração sobre os fatos na edição dominical de dois jornais de grande circulação em São Paulo, o que foi feito no último dia 14 de março, e destinar R$ 36,3 milhões para iniciativas de promoção de direitos humanos e para ex-trabalhadores da empresa presos, perseguidos ou torturados.
Dois pesquisadores externos colaboraram com as investigações. MPF e MPSP contrataram o cientista político Guaracy Mingardi, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Pela sede da Volkswagen na Alemanha, foi contratado o professor Christopher Kopper. Os dois trabalhos são mencionados no relatório que foi finalizado em outubro passado e divulgado agora, após o cumprimento do TAC.
Atitude colonialista – A Volkswagen chegou ao Brasil em 1955 e sempre contou com incentivos governamentais. Em 1964, era uma das maiores empresas do país e o então presidente da subsidiária brasileira, o ex-filiado ao partido nazista Friedrich Schultz-Wenk, demonstrava uma atitude de superioridade colonialista, embora houvesse se nacionalizado brasileiro. De acordo com o relatório de Kopper, ele achava que os brasileiros eram desorganizados em geral e, em correspondência com o presidente do grupo na Alemanha, elogiou “a organização da revolta, que havia sido extremamente bem-preparada, considerando a situação local”.
Ele também reconhecia a violência do governo militar. Ainda segundo a pesquisa de Kopper, “Schultz-Wenk não minimizou o caráter violento do golpe, chegou até a justificá-lo. A sua frase ‘Atualmente está acontecendo uma perseguição como nem sequer tivemos na Alemanha em 1933’ não expressa horror, mas sim respeito pela ação consequente dos militares contra a esquerda. Com seu argumento ‘Pode-se questionar, se tudo isso é certo, pois como sabemos, pressão sempre gera uma pressão contrária’, ele não criticou a violência em si, mas a, no seu ponto de vista, iminente revolta da esquerda. Schultz-Wenk confiava que o governo militar mantivesse sob controle a alta inflação com medidas impopulares, impondo uma estratégia de estabilidade firme à política econômica”.
É nesse contexto que a Volkswagen se torna colaboradora ativa do governo militar no que diz respeito à repressão aos críticos do regime. Sua atuação, de acordo com o relatório final, ocorreu em três eixos: participação da Volkswagen no golpe de Estado, (b) colaboração da empresa com os órgãos da repressão à dissidência política e (c) repressão à organização do trabalho.
Apoio à polícia política – Embora não tenham sido identificados elementos que permitam afirmar que a empresa teve alguma participação no golpe, a Volkswagen apoiou a manutenção do regime militar e obteve benefícios do modelo econômico e de privação de direitos. Segundo Kopper e Mingardi, há indícios de que Volkswagen tenha chegado a ajudar materialmente na implantação da Operação Bandeirante (Oban), já que ela não era financiada com recursos públicos. A Oban foi o primeiro aparato repressor criado pelos militares, mas funcionou como projeto-piloto, à margem das estruturas oficiais.
As investigações mostram que houve intensa colaboração entre a Volkswagen e os órgãos de repressão, com conhecimento da presidência da empresa. No lugar de cuidar do patrimônio da montadora, o Departamento de Segurança Industrial agia como uma polícia política interna, confiscando materiais considerados subversivos e elaborando dossiês dos funcionários. Além disso, havia uma intensa troca de informações entre o departamento chefiado por um major e as estruturas repressivas, e a Volkswagen chegou a delatar empregados tidos como suspeitos, mesmo sabendo que eles corriam risco de tortura física e mental e até de morte.
Prisões foram efetuadas na empresa e ao menos um funcionário relata ter começado a ser torturado em seu ambiente de trabalho. Preso em 1972, Lucio Bellantani afirmou à Comissão da Verdade de São Paulo que, “na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”. A Volkswagen também ocultou seu paradeiro e de outros, não informando às famílias que haviam sido presos.
“A colaboração da empresa com a VW não foi eventual ou fruto de pressões insuportáveis”, afirma o relatório final. “Ao contrário, está claro que a Volkswagen estabeleceu por disposição própria uma intensa relação de contribuição com os órgãos da repressão política, muito além dos limites da fábrica. A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura.”
Sem emprego – Aqueles que sobreviviam à prisão também eram demitidos e passavam a ter seus nomes incluídos em listas de indesejados, compartilhadas por diversas empresas, incluindo a Volkswagen. Dessa forma, tinham muita dificuldade de conseguir recolocação profissional.
Além do engajamento ativo na fase mais repressora da ditadura militar (1968 a 1976), a montadora mobilizou-se para enfrentar as grandes greves de metalúrgicos que ocorreram em 1979 e 1980. Mais do que apenas um confronto entre diferentes interesses, a postura da Volkswagen demonstrou que ela “agiu para criminalizar as lideranças sindicais, colaborando com a polícia política para reprimir o movimento”, expõe o relatório. “Para tanto, agiu fora do perímetro de sua propriedade, espionou o sindicato e agiu como um braço do Dops [Departamento de Ordem Política e Social], inclusive interrogando funcionários. Houve, por parte da alta direção da empresa, uma mistura de oposição empresarial com postura ideológica, numa combinação que reforçou as ações de perseguição sistemática contra aqueles que eram reputados opositores dos interesses da empresa e do regime militar.”
Para o procurador da República Pedro Machado, a Volkswagen não foi única a agir assim. Na pesquisa feita por Mingardi, foram encontradas fortes evidências de que havia um grupo de empresas que atuavam em cooperação com a polícia política da época, especialmente serviços de inteligência militares. “Esse acordo demonstra, ao fim e ao cabo, uma postura importante da VW, de reconciliação com a democracia, e colabora para incentivar que outras corporações façam o mesmo, pois os ministérios públicos avaliam ampliar as investigações em face de outras empresas”, afirma ele.
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31 de Março de 2021 às 12h36
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Foto: Volkswagen
“Não me lembro de chorarmos pelo desaparecimento da democracia.” Esta frase traduz o posicionamento de uma das maiores empresas sediadas no Brasil durante a ditadura militar (1964 – 1985) e foi dita por Carl Hahn em uma entrevista à emissora alemã Das Erst. Ele, que chegou a ser presidente do grupo Volkswagen AG na Alemanha de 1982 a 1993, era diretor de vendas na época retratada pelo relatório “Direitos Humanos, Empresas e Justiça de Transição: o Papel da Volkswagen na Repressão Política Durante a Ditadura Militar”, elaborado pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
O trabalho foi iniciado em 2015 com uma representação feita à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), do MPF em São Paulo, e à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e Inclusão Social (PJDH), do MPSP, por 32 representantes, incluindo dez centrais sindicais, entidades, sindicatos e pessoas físicas. Segundo eles, a Volkswagen teria participado ativamente do aparato repressor durante a ditadura militar. Foram abertos então dois inquéritos para apurar os fatos, aos quais posteriormente se somou um terceiro, do MPT.
Os três procedimentos resultaram em um termo de ajustamento de conduta (TAC), firmado no ano passado entre os órgãos ministeriais e a Volkswagen. Com o acordo, a empresa deixa de ser alvo de possíveis ações judiciais desde que cumpra algumas condições: publicar uma declaração sobre os fatos na edição dominical de dois jornais de grande circulação em São Paulo, o que foi feito no último dia 14 de março, e destinar R$ 36,3 milhões para iniciativas de promoção de direitos humanos e para ex-trabalhadores da empresa presos, perseguidos ou torturados.
Dois pesquisadores externos colaboraram com as investigações. MPF e MPSP contrataram o cientista político Guaracy Mingardi, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Pela sede da Volkswagen na Alemanha, foi contratado o professor Christopher Kopper. Os dois trabalhos são mencionados no relatório que foi finalizado em outubro passado e divulgado agora, após o cumprimento do TAC.
Atitude colonialista – A Volkswagen chegou ao Brasil em 1955 e sempre contou com incentivos governamentais. Em 1964, era uma das maiores empresas do país e o então presidente da subsidiária brasileira, o ex-filiado ao partido nazista Friedrich Schultz-Wenk, demonstrava uma atitude de superioridade colonialista, embora houvesse se nacionalizado brasileiro. De acordo com o relatório de Kopper, ele achava que os brasileiros eram desorganizados em geral e, em correspondência com o presidente do grupo na Alemanha, elogiou “a organização da revolta, que havia sido extremamente bem-preparada, considerando a situação local”.
Ele também reconhecia a violência do governo militar. Ainda segundo a pesquisa de Kopper, “Schultz-Wenk não minimizou o caráter violento do golpe, chegou até a justificá-lo. A sua frase ‘Atualmente está acontecendo uma perseguição como nem sequer tivemos na Alemanha em 1933’ não expressa horror, mas sim respeito pela ação consequente dos militares contra a esquerda. Com seu argumento ‘Pode-se questionar, se tudo isso é certo, pois como sabemos, pressão sempre gera uma pressão contrária’, ele não criticou a violência em si, mas a, no seu ponto de vista, iminente revolta da esquerda. Schultz-Wenk confiava que o governo militar mantivesse sob controle a alta inflação com medidas impopulares, impondo uma estratégia de estabilidade firme à política econômica”.
É nesse contexto que a Volkswagen se torna colaboradora ativa do governo militar no que diz respeito à repressão aos críticos do regime. Sua atuação, de acordo com o relatório final, ocorreu em três eixos: participação da Volkswagen no golpe de Estado, (b) colaboração da empresa com os órgãos da repressão à dissidência política e (c) repressão à organização do trabalho.
Apoio à polícia política – Embora não tenham sido identificados elementos que permitam afirmar que a empresa teve alguma participação no golpe, a Volkswagen apoiou a manutenção do regime militar e obteve benefícios do modelo econômico e de privação de direitos. Segundo Kopper e Mingardi, há indícios de que Volkswagen tenha chegado a ajudar materialmente na implantação da Operação Bandeirante (Oban), já que ela não era financiada com recursos públicos. A Oban foi o primeiro aparato repressor criado pelos militares, mas funcionou como projeto-piloto, à margem das estruturas oficiais.
As investigações mostram que houve intensa colaboração entre a Volkswagen e os órgãos de repressão, com conhecimento da presidência da empresa. No lugar de cuidar do patrimônio da montadora, o Departamento de Segurança Industrial agia como uma polícia política interna, confiscando materiais considerados subversivos e elaborando dossiês dos funcionários. Além disso, havia uma intensa troca de informações entre o departamento chefiado por um major e as estruturas repressivas, e a Volkswagen chegou a delatar empregados tidos como suspeitos, mesmo sabendo que eles corriam risco de tortura física e mental e até de morte.
Prisões foram efetuadas na empresa e ao menos um funcionário relata ter começado a ser torturado em seu ambiente de trabalho. Preso em 1972, Lucio Bellantani afirmou à Comissão da Verdade de São Paulo que, “na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”. A Volkswagen também ocultou seu paradeiro e de outros, não informando às famílias que haviam sido presos.
“A colaboração da empresa com a VW não foi eventual ou fruto de pressões insuportáveis”, afirma o relatório final. “Ao contrário, está claro que a Volkswagen estabeleceu por disposição própria uma intensa relação de contribuição com os órgãos da repressão política, muito além dos limites da fábrica. A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura.”
Sem emprego – Aqueles que sobreviviam à prisão também eram demitidos e passavam a ter seus nomes incluídos em listas de indesejados, compartilhadas por diversas empresas, incluindo a Volkswagen. Dessa forma, tinham muita dificuldade de conseguir recolocação profissional.
Além do engajamento ativo na fase mais repressora da ditadura militar (1968 a 1976), a montadora mobilizou-se para enfrentar as grandes greves de metalúrgicos que ocorreram em 1979 e 1980. Mais do que apenas um confronto entre diferentes interesses, a postura da Volkswagen demonstrou que ela “agiu para criminalizar as lideranças sindicais, colaborando com a polícia política para reprimir o movimento”, expõe o relatório. “Para tanto, agiu fora do perímetro de sua propriedade, espionou o sindicato e agiu como um braço do Dops [Departamento de Ordem Política e Social], inclusive interrogando funcionários. Houve, por parte da alta direção da empresa, uma mistura de oposição empresarial com postura ideológica, numa combinação que reforçou as ações de perseguição sistemática contra aqueles que eram reputados opositores dos interesses da empresa e do regime militar.”
Para o procurador da República Pedro Machado, a Volkswagen não foi única a agir assim. Na pesquisa feita por Mingardi, foram encontradas fortes evidências de que havia um grupo de empresas que atuavam em cooperação com a polícia política da época, especialmente serviços de inteligência militares. “Esse acordo demonstra, ao fim e ao cabo, uma postura importante da VW, de reconciliação com a democracia, e colabora para incentivar que outras corporações façam o mesmo, pois os ministérios públicos avaliam ampliar as investigações em face de outras empresas”, afirma ele.
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